O tempo que se desfaz.

O que você encontrará nesta crônica:
"Somos passageiros de um tempo em que o agora se desfaz antes de ser nomeado. A impermanência é nossa única certeza, mas vivemos como se o amanhã fosse garantido. Quantas vezes tentamos segurar a vida, mas a finitude nos lembra: nada nos pertence. Ela nos assombra e, paradoxalmente, nos define, pois, se fôssemos eternos, adiaríamos tudo. O medo é da morte, do que deixamos de viver ou dos arrependimentos que ela revela? No fim, não é sobre evitar o fim, mas viver de forma que, quando ele chegar; não reste vazio, mas plenitude. Quando o tempo se esgotar para você, o que ficará para contar sua história?"

I. O hospital.
Tudo à minha volta está em silêncio. Apenas a chuva lá fora denuncia e insiste em dar sinais de vida à natureza, nesta noite ofuscada pela minha mente e pelos pensamentos que teimam e ultrapassam os limites do meu universo. O som da água respingando contra a janela soa como um compasso, um ritmo que contrasta com a tempestade da minha mente, gerada pelo momento em que me encontrava envolvido.
No alto da porta, o relógio cumpre sua missão solitária. O ponteiro maior aponta para o céu; o menor, para a maca onde uma senhora idosa dorme envolta em fios e silêncios. O ponteiro vermelho corre impassível, arrastando os segundos para longe. São exatamente três horas. Passos ressoam no corredor. Enfermeiros seguem conduzindo suas rotinas em seus árduos plantões de cuidar da vida e das vidas. Para mim, tudo ali parece um universo estranho, cheio de paradigmas e interrogações que não cabem em respostas prontas. O que realmente significa estar vivo? Muitos filósofos e pensadores já escreveram sobre a consistência da nossa existência. Mas, quanto mais me aprofundo, mais me questiono sobre os ciclos.
Onde é o começo e o fim, e em que parte da jornada nos encontramos? Será que o fim nada mais é do que um retorno ao ponto inicial?
Depois de muito insistir, minha mente finalmente se aquieta, mas então, o dia já se mostrava presente. A claridade e os raios de sol se infiltravam, clareando até meus pensamentos mais profundos. E, então, de repente, a realidade se impõe à minha divagação.
- “Oi, vovó...”. Uma voz infantil se infiltra no quarto, dissolvendo minha atmosfera contemplativa.
Uma menina entra, pequena e inquieta, em visita à avó internada ao lado. Um sorriso tímido ilumina o ambiente. Segurando sua bonequinha, mantém-se distante da cama. Meio assustada, ela observa ao redor. Seu olhar hesita entre sua avó e os fios que parecem segurar aquela senhora no tempo. Devagar, se aproxima um pouco mais da avó e, então, sem rodeios, como só as crianças fazem, ela pergunta:
- “Vovó, você vai morrer?”
O silêncio do quarto parece tornar-se ainda mais denso. Olho para o relógio, e foi como se até ele hesitasse em continuar sua marcha. Do lado de fora, a chuva persiste em sua melodia, indiferente ao que acontece dentro do quarto. A pergunta paira no ar, aguardando sua resposta. Uma pergunta lançada sem cerimônia, sem medo do impacto, na inocência de uma fala infantil. Não acostumada com tantas conexões penduradas na parede, ela permanece quieta; porém, seu olhar curioso percorre os tubos e fios que ligam a idosa a um frasco suspenso sobre o leito.
A avó abre os olhos devagar. Um sorriso brando surge em sua face, desses que parecem carregar mais histórias do que palavras.
- “Todos nós vamos, um dia, minha flor.”
A netinha franze a testa e, absorvendo a resposta, olha para sua boneca, ajeita seu vestido amassado e a coloca no leito, dando a impressão de que quisesse protegê-la de algo que ainda não entendia.
- “Mas não é hoje, né?”
A senhora esforça-se para não demonstrar sua dor. Ajeita os cabelos grisalhos e estende a mão enrugada, segurando os dedinhos miúdos de sua neta com a suavidade de quem sabe que a vida é um fio, e que, às vezes, um pequeno toque basta para segurar o instante.
- “Que linda você está, Rafaela!”. E pergunta sobre a escolinha, o lanche, as atividades de aula.
Ela, então, abre sua mochila e mostra um desenho feito na escola. Na folha colorida, uma família unida: pai, mãe, ela e a avó. Ao lado, um animalzinho; e, ao fundo, uma casa, uma árvore, o sol e montanhas.
Três gerações estão à minha frente.
Da enxada à inteligência artificial, do suor da terra à lógica dos algoritmos. A filha da senhora idosa que a acompanha, uma professora, trazia consigo as inquietações do mundo moderno. Nas longas noites em que passei ao lado dessa idosa, ela relembrou as histórias de luta, compartilhando comigo sua vida como imigrante italiana.

Il. A espera.
Ao meu lado esquerdo, outra senhora muito idosa, também imigrante, vinda do Japão, à qual eu fazia companhia. Pelas circunstâncias, sua alimentação era enteral, administrada por uma sonda nasal. A idade avançada parecia acompanhar um processo de batalha interna, em que o sono parecia se mostrar como elemento restaurador, e, então, ela praticamente permanecia adormecida por todas essas longas semanas. Mas seria esse sono restaurador mesmo, ou um ensaio para a despedida? Ou apenas um refúgio, um intervalo para repor a energia entre o agora e que estaria por vir?
Uma longa espera para quem a acompanhava. Momentos em que tudo se passava pelas nossas mentes de maneira automática, e, sem que percebêssemos, muitas indagações nos invadiam impiedosamente. Ali dentro, o tempo parecia suspenso; era como se a vida ali se desenrolasse em um ritmo próprio, completamente diferente do mundo lá fora. Entre a respiração pausada e o soro que gotejava, a sensação que causava era a de que a existência oscilava entre a permanência e o desapego.
Ali, ninguém ousava dizer em voz alta, mas todos sabiam que havia um limiar sendo cruzado, um ponto da jornada em que o corpo, já cansado, se rendia ao que a alma já havia compreendido. A vida que outrora se mostrara jovem e firme, mostrava agora seu outro lado, sua essência frágil e inegociável, parecendo apenas esperar o instante certo para se desfazer em silêncio. Por mais que quiséssemos evitar esses pensamentos, eles teimavam em cruzar nossos muitos momentos, nós da família, em nossos dias e noites ao lado dessas duas senhoras já tão idosas.
A condição da finitude nos é dada junto com a vida, pois, desde o instante em que nascemos, ela nos acompanha. Ainda assim, passamos a vida tentando ignorá-la. Afinal,pensar em finitude é pensar em perdas, significa dor, sofrimento e despedidas. E temos medo disso.
Mas, paradoxalmente, é justamente essa perspectiva da finitude que pode nos colocar diante do nosso ser, da nossa existência. Quando nos damos conta do tempo limitado que temos, começamos a questionar o sentido da vida, o sentido das nossas escolhas. Muitas vezes, tomando consciência de toda a nossa existência - do passado, do presente e do futuro - nos aproximamos mais da nossa vivência.

lll. Quando o tempo se dobra.
Martin Heidegger, filósofo alemão, dizia que a morte é a única possibilidade sempre presente. E talvez seja essa certeza inevitável que desperte em nós uma certa angústia silenciosa, uma angústia que, longe de ser paralisante, pode nos levar a uma vida mais autêntica. Afinal, o que de fato faz sentido? O que realmente vale a pena?
Se soubéssemos que nos restam apenas 24 horas, o que faríamos? O que essa última fração de tempo revelaria sobre o que é essencial? O que seria essencial para você?
Curiosamente, muitos dizem que a vida é curta, mas a desperdiçam como se fosse infinita. Gastamos tempo precioso com distrações vazias, adiamos o que realmente importa, ignoramos que, em algum momento, o tempo se esgota – e então chegará a hora em que não haverá mais escolhas nem recomeços.
Será que eu quero ser quem estou sendo? Ainda há tempo de fazer algo de mim mesmo? Talvez seja isso que fazemos quando encaramos nossa mortalidade, essa nossa finitude. Fica mais claro o que é real, para que ele se revele. O que sobra, afinal? Apenas o ser.
Diante da finitude, tudo o que acumulamos se torna irrelevante; reinará soberanamente o campo do ser. Valerá o que somos ou fomos, permanecerá o que construímos dentro de nós e nos outros. O ter, esse, fica muito secundário; é apenas um meio, nunca o fim.
- “Vovó, o que é isso?” A voz miúda atravessa a barreira do silêncio e se espalha pelo quarto. A netinha observa atentamente o fio transparente que desce do frasco e desaparece no braço de sua avó. Seus olhos percorrem o trajeto do líquido que pinga compassadamente.
- “É água? Tá pingando lá em cima... Para que serve, vovó?”. A mãe suspira, impaciente, impõe uma resposta adulta e tenta encerrar o assunto. Mas a menina não desvia o olhar, insistindo em entender, em sua pequena lógica, por que a avó precisava daquele fio para tomar a água pelo braço. Rafaela não percebe a urgência do tempo; para ela, o agora é tudo o que existe. O depois não é um problema e o antes não pesa. Há apenas o instante presente e a certeza de que sua avó ainda está ali.
Ao lado da cama, sua bonequinha de pano repousa inerte, uma testemunha muda desse tempo que se esvai. Talvez fosse a mais sábia naquele instante: silenciosa, apenas observa. Não questiona, não teme, não antecipa. Apenas está. Talvez esse seja o segredo: perceber sem pressa, existir sem resistência.
De um lado, a avó, presa a fios que prolongam a permanência. Do meu lado, a senhora ainda mais idosa, rendida a um sono que parece se estender além da lucidez. Entre elas, um quarto onde o tempo se dobra sobre si mesmo, onde a vida e a despedida se entrelaçam em um mesmo sopro, oscilando entre o efêmero e o eterno.
Estamos todos imersos nessa travessia, entre gerações e dimensões, tentando discernir entre o absoluto e a ilusão. A vida é essa travessia suspensa entre o que já foi e o que ainda será. Tentamos compreender os limites do tempo, mas ele escapa, fluido, como o soro que pinga lento, gota a gota, sem pressa de acabar, indiferente à nossa pressa.
E nós seguimos, atravessando esse instante fugaz, onde o passado se dissolve e o futuro ainda não se fez.
No fim, é apenas aqui, nesse breve agora, que realmente existimos!
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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.