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Foto do escritorOtavio Yagima

Crônica #90 | A vida fora de rota.

Atualizado: 27 de set. de 2023

O voo do falcão peregrino.



O que você encontrará nesta crônica:


Sobrevoando e observando o homem com a visão de um falcão, cujo voo nos coloca em alerta, nos resgatando da confinação de nossas mentes, presas e iludidas em dogmas e crenças; cuja atenção e olhares estão viciados na horizontalidade, ou simplesmente direcionados somente ao chão. Olhemos mais para o céu, para as aves, para os seus exuberantes voos, sentindo a brisa, o sol, a natureza, e expandindo nossa visão, ainda restrita no entendimento do que é a verdadeira vida. O falcão vive suas rotas migratórias de maneira corajosa e plena. E nós, humanos peregrinos, como estamos na nossa rota de vida?


I. O olhar do falcão.


É muito comum, nas nossas caminhadas pelos arredores de nossa residência, nos depararmos com muitos pássaros. Dia desses, um lindo falcão se mostrava no topo de uma grande árvore, todo imponente, a olhar por todo horizonte. E logo depois num inusitado momento, ele estava no chão, exuberante na sua postura, calmo e tranquilo. Não resistimos, paramos para admirar e registrar em foto a sua peculiar beleza. Encarou a nós com o seu olhar penetrante, e dessa silenciosa troca de olhares me despertou meditar sobre a sua origem.


II. O nascimento.


No começo, tudo à minha volta era calmo.

Eu sentia o exterior apenas pelo som de alguém se aproximando. Quando tinha frio alguém me abraçava, quando chovia alguém me cobria.

Começou a ficar apertado o lugar em que eu estava, um invólucro rígido me envolvia. Não tinha outra opção senão rompê-lo, e me esforcei muito para isso. Foi então, que pela primeira vez vi a tão esperada luz, pois só conhecia aquela escuridão. A minha mãe era linda, me observava com seus olhares profundos e meigos. O meu pai estava num local mais afastado, porém, próximo o bastante para acompanhar o meu nascimento.


Passaram-se meses.


Crescemos com muito amor. Quando minha mãe estava conosco, o meu pai saia em busca de alimento, e vice-versa. Morávamos todos juntos, porém se aproximava cada vez mais o momento de deixarmos nosso lar. O inverno chegava rapidamente e nossa casa, que estava num penhasco bem alto, ficaria desprotegida. Sou o mais novo dentre os três irmãos.


Numa manhã, quando acordei com ventos frios vindo do sul, percebi que meus dois irmãos já não estavam ao meu lado. Naquele dia, por mais que esperasse, não recebi nenhuma refeição. Meus pais já não se importavam comigo, assim pensei. No entanto, via-os sempre próximos, de um lado para outro, sem me tocar, apenas flutuando na brisa do ar.


Eu me senti solitário, inseguro, desprotegido e abandonado.


Praticamente obrigado pulei num vazio, queda livre, senti imediatamente a gravidade zero. O zero do início de uma nova fase de vida.

Vi, literalmente, o céu de cabeça para baixo. Era o meu primeiro voo. Não sabia o que fazer, só podia contar com as minhas asas. Frações de segundos, e por impulso e coragem abri, e as estendi com maior intensidade. E pela primeira vez senti a força do vento passar entre as minhas penas. Retomei posição, vi então que eu não estava sozinho. Meus dois irmãos me incentivavam, e meus pais me seguiam logo atrás. Que alegria invadiu meu coração!


O tempo passou.

Cresci.

Ainda muito jovem aprendi a caçar e quase fui caçado. Muitos desafios enfrentados, climas adversos com calores, chuvas e frios intensos, constantes ameaças de vida.

 

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III. O encontro.


Um certo dia fui ferido por algo, minha asa esquerda estava machucada. Sem forças para alçar voos altos, precisei descer ao nível do quase chão. Sob uma frondosa árvore estava um senhor de cabelos brancos, vestido com uma manta de linho de algodão. Apoiava-se num cajado, e usava uma pulseira que refletia fortemente a luz do sol, que passava por entre as folhagens.


Ele me viu ferido, me envolveu em seu manto. Começou a orar numa língua que não conhecia, e com a imposição da palma de sua mão, sem me tocar, passava sobre minha asa ferida. Com fisionomia calma, de semblante sereno, nada dizia. Depois de um certo tempo, ele me colocou na alça do seu cajado; e então perguntei:


- “Quem é o senhor, que me acalenta sem saber quem sou e nem de onde vim?”

O silêncio persistiu e se manteve ali.

- “Sabe que sou um predador? Domino os céus, e ninguém mais tem uma visão tão profunda como a minha. Vejo uma presa a longa distância, domino o ar me mantendo parado, sem cair. Mas, quando decido e encolho as minhas asas, mergulho como um míssil, numa explosão de velocidade. Tenho as garras fortes como de um aço. Elevo as presas com o dobro do meu peso! O meu grito de guerra ecoa por enormes e distantes vales, esses vales cheios de seres rastejantes. Mesmo assim não teve medo de mim?”

- “Tens fortes atributos, meu querido falcão. Havemos de convir que dominas o ar, e tu te eleges de indomável. Entretanto, não tens poderes de caças sob os oceanos profundos, não possuis veneno para tua própria defesa, como outros animais. Sabes para onde voas seguindo tua rota da migração, porque assim a natureza fala dentro de você.” Responde nessas palavras, aquele senhor.


Vi então que a minha asa, antes ferida, estava sã. Pude alçar voo e assim parti.

Fiquei a pensar nas suas palavras. Não me fez sentir o rei dos ares, e nem um deus entre o céu e a terra. Quem é ele afinal? Mergulhado nesses profundos pensamentos, agora o meu voo já não era apontado para as presas, e sim para os seres humanos que via caminhando. Meu voo agora era sobre prédios, e sobre uma rua movimentada. Senti-me sufocado não só pelo ar pesado, mas pelos seres humanos perdidos em seus pensamentos, com andar rápido e apressado. Caminhando com suas visões apontadas apenas na horizontal, olhares voltados para baixo, e muitos poucos olhando para o céu. Desligados da natureza, quase que ausente, naquele inóspito cenário.


Os pássaros seguem as leis universais, da natureza, para que o mundo siga girando, e oferecendo as belas sintonias das estações do ano.


Tudo isso, sem necessidade de escritas e documentos reconhecidos e registrados, como as leis que os humanos seguem. Os homens parecem confinados na prisão de suas mentes, indiferentes a essas leis universais, achando que devem seguir apenas as leis criadas por eles mesmos. Inventaram tradições, dogmas, seitas, crenças que os dominam com muitos sentimentos de medo. Vivem acreditando em ilusões, camuflam-se da verdade, mas elegem-se como solucionadores de problemas. Tão simples seria se apenas seguissem as leis da natureza, presentes mas dormentes no fundo de cada ser vivente.


Muitos nem sabem que em seus corpos materiais habitam almas. Deveriam ser ou se eleger como templos individuais, mantê-los limpos e conservados, para que suas almas possam reinar. Afinal, são divindades em sua inerente grandeza.


Absorto nas observações lá de cima, ouço um forte zumbido que vinha de um estranho inseto voador, e quase fui atingido. Era um tal de drone, um tipo de pássaro mecânico criado pelo homem. Que civilização estranha é essa?

Após o susto sigo a observar. Mas cansado, resolvi então voltar para aquela frondosa árvore, junto daquele bondoso senhor.


IV. O reencontro.


- “Voei cheio de energia, e com meu egoísmo nem lhe agradeci. Peço-lhe perdão meu senhor... volto aqui para expressar a minha gratidão pela cura da minha asa.”


Então, assim ele me respondeu:

- “Esse despertar que surge do fundo do seu ser, é como o despertar do amor, intrínseco, nos corações dos homens. O seu sentir é de difícil expressão por palavras. O homem precisa aprender a sentir. Mas ele foge o quanto pode dos seus sentimentos, sem conseguir entendê-los de fato. Possui um medo terrível de sentir quaisquer tipos de dores. Pensa no quão é sofrido suportar, e mesmo suportando, dificilmente, consegue sentir tudo o que está além daquela dor. A vida de cada um que observastes no seu voo, não é determinada pelo que a vida lhe traz, mas sim pela atitude que ele toma diante do que recebe. Costumam considerar os fracassos e se culpam por acontecimentos, erroneamente interpretados, pelas suas mentes iludidas. Tu acreditas, que eles mesmos escolhem as suas próprias alegrias e tristezas? Burlado pelas suas cobiças, plantam e colhem infelicidades. Muitos se colocam acima dos montes mais altos, mas suas mentes jazem nas profundas trevas de cavernas. Alegrias borbulham superficialmente, e tristezas se plantam enraizando de angústias o seu mais profundo ser.”


- “Difícil compreender. É de perceber o quanto eles precisam de um resgate.” Assim interrompi aquele senhor.


- “Temeste quando alçaste teu primeiro voo, não é, caro jovem falcão? Lembra-te?”


Faz uma pequena pausa e respira de forma profunda, gesticula com sua mão e continua:


- “Depois voaste sobre maiores picos e florestas desconhecidas, um longo caminho fizeste em rotas migratórias. Voaste sobre inúmeros povoados, e muitos homens avistaste. Foste um, entre outros muitos falcões. Em seu processo de crescimento, fortaleceste por diminuíres os receios e inseguranças. Naquela primeira rota de migração, tu não pode mais voltar. Voltar é impossível nessa vida. Basta então seguir em frente. Se não tiveste arriscado seu primeiro voo, o que seria de ti hoje? Por que perdeste o medo? Porque se tornou o falcão, porque se tornou o conhecimento. Ora deixou de ser uma criança, ora deixou de ser um adolescente, e agora, passas a ser um pouco mais sábio. Renasceste em vida. Isso é muito rico, se assemelha muito à vida de um rio.”


E ele continuou, apontando para o rio que corria calmamente à nossa direita:

- “Esse rio, desde a sua nascente passou por muitos lugares, por montanhas, florestas, cidades, percorrendo com suas águas longos e difíceis caminhos, que constituem sua jornada. Seu objetivo maior é chegar no oceano. Porém, só de avistá-lo o temor se apodera do rio, sente que deixará de existir, definitivamente, perante tamanha imensidão. Voltar? Impossível! Como enfrentar? Arriscar? Assim, sem qualquer outra alternativa ele se entrega, segue em frente, entra no oceano... e então, percebe que já não sente mais medo. Descobre que não desapareceu, não deixou de existir. E o mais notável: tornou-se oceano! Um ilusório desaparecimento, culminando num precioso renascimento.”


Fiquei sem palavras, apenas observava agora o rio, que corria infalivelmente para um imenso oceano.


- “Estás vendo essas duas sementes, dessa enorme e frondosa árvore, que nos oferece essa agradável sombra refrescante?” Coloca-as, lado a lado, e diz que ambas possuem dentro de si as mesmas propriedades. - “Elas precisam romper suas cascas, assim como tu fizeste com a casca do ovo. Uma não vai viver através da germinação da outra. A que não romper sua casca, vai reter sua evolução, perecerá, sem nem ao menos tentar. Assim se encontram os homens com seus medos. Não vivas dependendo das experiências dos outros, rompa a sua própria casca, entrega-te à vida, não demore, siga em frente, coragem!”


- “Entrega-te à Vida, como os rios se entregam ao Oceano! Diante dessa Força Maior que nos envolve a todos, nada há que se temer. Apenas abrirmos nossos corações, de forma sincera e consciente. E então, confiantes, agradecermos a abundância do sublime amor recebido...”


V. Despedida.


Como o reflexo do Sol a reluzir na sua pulseira, uma luz azul se fez presente no local. Tudo pareceu florescer ao redor, flores, perfumes e cores; e então ele se despede de mim. E eu, enriquecido com esse encontro de cura, alço voo. Agora, não mais como o voo para fora do ninho, e sim voos para dentro de mim. Voos com novos olhares, voos de esperança, voos em busca da minha verdadeira identidade, minha essência, minha genuína liberdade!

 

Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.

 

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