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Foto do escritorOtavio Yagima

Crônica #37 | Compreensão

Atualizado: 15 de mar. de 2022

Compreendemos que não apenas somos, mas estamos




Num encontro casual com uma amiga terapeuta, falávamos de assuntos diversos. Conversávamos principalmente sobre o mundo atual e todas as grandes mudanças ocorridas nos últimos tempos, e também de assuntos envolvendo relacionamento familiar. No meio da conversa surgiu a questão do número grande de crianças e adolescentes com dificuldades de foco e atenção nas aulas, principalmente durante esse período de pandemia onde as aulas passaram a ser via internet, no sistema home. Lembrei-me do meu último ano de faculdade, onde dava aulas particulares de matemática e física e assim compartilhei com ela, essa minha história.


... Certa vez a mãe de uma pré-adolescente me ligou pedindo aulas particulares de matemática e física. Com endereço e horário combinado fui até o local indicado. Dei de frente com uma mansão e seus muros altos e um lindo jardim na calçada. Fui atendido por um segurança e logo conduzido ao interior da belíssima construção. Diferente do jardim da calçada que era gracioso, o de dentro era majestoso, talvez pela grande extensão de gramado que o circundava. A entrada da mansão já se impunha imponente com uma enorme porta e dois grandes leões entalhados em madeira, posicionados como guardiões. A sala era simplesmente cinematográfica. Belíssimos móveis, diversos quadros e um piano de cauda que se destacava por si só. O piso todo de granito refletia os raios do sol que entravam pelas janelas, também imponentes pelo tamanho e beleza. Teto bem alto, cortinas, quadros, vasos de flores, e uma belíssima mesa de jantar em madeira maciça compunham uma outra sala adjacente.


Uma senhora elegante desceu por uma grande e belíssima escada elíptica e nós nos apresentamos. Ela me expôs as dificuldades que a sua filha tinha nas matérias, e que a mais problemática era em ciências exatas. Contou que já havia tentado com vários outros professores particulares. Ela não me perguntou o preço das aulas e nem sequer me questionou a metodologia. Precisava que alguém realmente pudesse ajudá-la de forma efetiva. Mediante sua expectativa o desafio se fez presente.



Ela me pediu que aguardasse um pouco, pois sua filha já estaria retornando do colégio. Com chás e diferentes tipos de docinhos servidos por uma senhora com uniforme, aguardamos pacientemente. Nesse intervalo ela me contou uma parte de como era a vida da família. Tinham uma rotina bastante agitada, muitas viagens, negócios, reuniões, e nem sempre conseguiam ter tempo com sua filha, porém, semanalmente a levavam ao haras e lá ela praticava equitação.


Vi pela enorme janela a garota descendo de um carro preto, com motorista particular. Estávamos indo em direção ao hall de entrada quando ela entra apressadamente. A sua mãe interrompe a caminhada nervosa e me apresenta como seu novo professor. Com um leve aperto de mão, ela diz “Raquel”, dá as costas indo em direção à escada e calada vai subindo. Sua mãe pede desculpas pela atitude da filha. Eu respondo dizendo-lhe que gostaria de avaliá-la nos primeiros encontros, sem aulas específicas de matemática. E assim eu fiz.


Na primeira aula ela me recepciona um tanto indiferente e com frieza. Desconfiada e sem acreditar em melhoras, ela começou com uma sessão de provocações. Ela sentou na mesa de estudos que ficava diante de uma janela, e simplesmente foi pegando seus lápis de cores e quebrando ao meio um por um, jogando-os todos janela abaixo. Apenas observei pacientemente o final do ato e fui até lá embaixo, no jardim, pegar os objetos. Por duas vezes ela repetiu o ato, um deles lançando também um livro de matemática e outro um copo já vazio de suco, que a serviçal tinha levado. Terminado esse ato de lançamento de objetos, fiquei de pé, calado, observando o jardim pela janela. Rebeldemente ela se atira sobre um tapete macio e se deita. Abraça um urso de pelúcia e finge dormir. Ao guardar o livro na sua mochila, notei que ela mantinha um diário.


- “Se vai ficar aí fazendo nada, é melhor ir embora” Raquel fala exaltada.


- “Pensei que você estivesse dormindo. Por isso fiquei quieto...”


- “Não gosto de matemática. Odeio números. Odeio....odeioooo!!”


- “Raquel, sabe que eu odeio chuchu? E nem por isso jogava fora quando minha mãe me fazia comer...”, respondi. Raquel continua sussurrando para o seu urso de pelúcia. Vira de um lado e de outro. Pega uma revista de quadrinhos, interage com a história. Ri de algumas passagens. Ao terminar ela lança longe a revista. Observo que existe uma revolta interna e parece estar sempre mal humorada. Eu tinha como objetivo manter um diálogo e assim o fiz. As frases dela continham apenas exclamações e reclamações. Era grande o sentimento contido de revolta.



Foram mais dois encontros com Raquel, sem falar de matemática, aguardando uma oportunidade de abertura. Propositadamente levei na carteira um mini calendário de bolso com imagem de cavalos, assim marcava nele os dias de aulas dadas.


- “Você gosta de cavalos?”. Assim ela me perguntou.- “Sim, eu gosto. Mas eu não tive oportunidade de conhecer a fundo esse animal.” Respondi.


- “Por que você gosta dessa coisa chata chamada matemática?”


Foi a minha chance de interagir. Quando as exclamativas passaram a ser interrogativas significou que a porta da intercomunicação foi aberta. Mesmo assim não falei de números e nem de física.


Pedi autorização para que Raquel fosse comigo até o haras. Raquel ficou surpresa pois essa atividade era somente em finais de semana. No caminho fui conversando com ela sobre cavalos, e em determinado momento aproveitei e disse que gostando ou não, os números fazem parte de tudo o que existe, e dei alguns exemplos nas coisas do dia a dia. Ela ficou ouvindo quieta, sem muito interesse. Chegando no local, ela “levou um choque” quando tocou na porta do carro; aproveitei e expliquei sobre a descarga estática.


Descemos e ela me conduziu e me apresentou o seu cavalo.


- “Belíssimo!!” Realmente belíssimo, eu disse.


Ela deu um largo sorriso e o abraçou com carinho. Sabendo da sua paixão por ele e estando ao seu lado, comecei falando de proporções matemáticas do corpo de um cavalo, frequência do trote, como obtinham resultados dos tempos, distância percorrida num mix de álgebra e física. Pedi para ela sentir a respiração do belo animal e assim expliquei sobre frequência, batimento cardíaco e sugeri sentir o seu olhar. Ela o abraçou novamente e o acariciou. Era com ele que compartilhava os momentos de maior prazer de seus dias. Disse-me assim:


“Nunca tinha pensado no meu cavalo dessa forma, nem sabia que tinha tantas proporções. Nunca tinha parado para ouvir seu coração. Só via o olhar dele, mas hoje eu vi diferente, eu acho que senti o seu olhar me dizendo alguma coisa. É de muito amor! Eu amo meu cavalo!! Agora amo mais ainda!!” E o beijou com carinho, passando as mãos em seu corpo. Ficou assim, abraçada nele, por um bom tempinho. Ela, pela primeira vez, realmente reconheceu o seu cavalo.


Vi uma flor de girassol que estava florida em um canto do curral e mostrei a belíssima e perfeita sequência de Fibonacci. Seus olhos se encheram de curiosidade, nunca tinha parado para contemplar uma flor e quis tocar com suas mãos essa beleza, antes totalmente oculta. Foi um desabrochar de descoberta, e quis perguntar e ver outros exemplos, procurando neles a recém-descoberta sequência de Fibonacci. Aproveitei a facilidade e exemplifiquei também com nossa orelha humana. E continuamos conversando, e fui explicando tudo o que me questionava.


Foi muito lindo e gratificante fazer parte desses momentos de descoberta da menina Raquel. O brilho nos seus olhos, o correr e procurar outros exemplos para se certificar e “comprovar” a perfeição da natureza.


Que lindo!! Que sentimento de felicidade brotou e preencheu também meu coração. Creio que ali, ambos, fomos preenchidos por uma alegria transbordante. Parecia ter desabrochado ali uma nova vida, pois o seu olhar para as coisas começara a ser outro agora. Começou a entender a perfeição da natureza e das proporções que Deus criou em tudo. Assim de aula em aula, da teoria à prática, Raquel iniciou uma caminhada para a compreensão dos números.


Certo dia estava conversando com a sua mãe, antes da Raquel chegar do colégio. Indaguei se ela tinha conhecimento do diário da filha. Respondeu que não sabia. Também perguntei de um nome masculino que ela rabiscara diversas vezes no livro de português. Ela também desconhecia quem era. A nossa conversa foi interrompida com o barulho e a entrada abrupta de Raquel, porta adentro. Veio correndo e me abraçou e disse.


- “Tirei 9,5. Olha.... Olha.... Olha. Que raivaaaaaaaaaaaa, podia ter tirado dez!!” Exaltada, sorrindo e feliz ela me mostrou a sua prova.


Tinha sido uma prova específica sobre proporção, razão, exponenciação e constantes. Tudo o que ela tinha compreendido durante o dia a dia; que se iniciou através do que ela mais gostava de fazer: contato com o cavalo.



Veio o final do ano e ela passou com notas altas. Feliz por finalmente conseguir dominar a tão complicada e detestada matéria, ela disse que gostaria que participasse da ceia de Natal com sua família.


Naquele momento o convite parecia inegável, a sua alegria era explícita em seu sorriso. Mas senti que era preciso dar um ponto final para que ela pudesse seguir seu caminho sem contar com a minha pessoa. Atingimos com sucesso o objetivo proposto. Agradeci pelo carinhoso convite diante da mãe dela. Expliquei o porquê da minha decisão. Raquel tinha mudado, antes estaria revoltada. Ela compreendeu.


Recebi um forte abraço e ela se emocionou deixando cair as lágrimas. Agradeceu pela paciência que tive e disse nunca mais esquecer os exemplos que eu usei nas aulas.

Tirei da minha mochila os lápis que ela tinha quebrado e jogado pela janela nos primeiros encontros, imaginando um dia chegar nesse momento de despedida. Eu tinha colado um por um, exceto um. Tinha deixado um lápis comum, o preto. Disse que esse, quem deveria colar seria ela própria, e com ele a partir dali construir sua história, escrevendo também no seu diário inseparável.


Fora da presença de Raquel, sua mãe me pagou as aulas. Além do valor, um cheque extra anexo a um bilhete: “Obrigada pelo seu carinho. Você fez toda diferença!”.


Nesse mesmo ano foi a minha formatura de faculdade e a Raquel veio nas minhas lembranças.

Também fui aprovado com uma bolsa de estudos e logo partiria ao Japão, na área da Engenharia.

Fui em busca dos meus sonhos e desejava que Raquel também conquistasse os seus.


Então, no final do bate papo com minha amiga terapeuta concordamos que, compreender é diferente de entender. Compreender é trazer para dentro de si e abraçar o real sentido.


Na compreensão estaria talvez o despertar do real caminho, seja ele para encontrar sua profissão, seu amor, seus objetivos ou seu equilíbrio nos relacionamentos. Compreender o quão é perfeita a Vida, talvez isso nos traga um descortinar de nova realidade. Sair do entender para compreender, nada fácil, porém mais efetivo.


A compreensão exige e leva à bondade...


Bondade é um sentimento que brota quando compreendemos, pois na compreensão o nosso ser cresce e cresce... e não precisa mais de dúvidas, não precisa mais de condicionais, não precisa mais de comprovações, porque entende que já não é mais somente ser, é estar. Compreendemos que não apenas somos, mas estamos. Então sigamos, compreendendo e valorizando esse nosso momento de Vida, com alegria e paz no coração.



 


Que tal baixar e compartilhar trechos dessa crônica com a galera!




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