O espelho nos devolve o que vemos ou o que imaginamos?
Num canteiro de obras, e no intervalo do almoço, alguns trabalhadores jogavam bola num campinho improvisado. Outros reunidos em grupinhos batiam um bom papo. Outros, deitados com o capacete sobre os olhos, tiravam um cochilo sob uma sombra. Observei um grupinho de três trabalhadores que estavam sentados sobre alguns blocos e em círculo; seus olhares concentrados apontavam o chão. Estavam sérios, e de repente, deram altas gargalhadas elevando suas cabeças. A atitude do grupo me chamou a atenção. Deixei meu capacete sobre a mesa e fui ao encontro do evento. Vi um pedaço pequeno de espelho quebrado no chão, no centro do círculo. Entre os três, o mais jovem era falante e engraçado. Entre uma piada e outra ele diz:
- “Olha só esse cara aqui ó. Esse bonitão não consegue nem uma namorada. Pode isso?”
Em tom de brincadeira ele exclama para o espelho, e os três davam risadas da conversa dele apontando para ele mesmo. Ele continuou assim, falando e rindo dos fatos que aconteceram nesses tempos de sua vida, nessa tão almejada São Paulo, terra dos sonhos e da busca de riqueza.
Achei engraçada essa atitude dele e sua espontaneidade era algo muito contagiante. A sua voz e o seu sotaque ecoavam de forma um tanto desarmônica, mas ecoava junto uma leveza e uma alegria tão irradiante que não pude deixar de me sentir atraído.
Ele não tinha beleza física de um galã, e tampouco era bonitão como havia exclamado para o espelho.
Percebi que aquele garoto, ainda que em tom de brincadeira, fazia naquele exato momento uma profunda reflexão de si mesmo, trazendo à tona todas as suas frustrações e desejos ainda não realizados.
- “Meu amigo, você é louco mesmo, fica aí conversando com espelho. Você já ficou doido, igual essa cidade maluca!”. - Assim fala, também com forte sotaque, um dos outros rapazes.
O garoto, sem se importar com a crítica do seu colega de trabalho, continua insistentemente sua conversa com o espelho. Num determinado momento ele se levanta e, cantando uma música começa a dançar; pega o seu capacete e bate nele como se fosse num tamborim. Num ritmo animado os outros dois entram na mesma vibração e acompanham sua apresentação.
Ele se senta novamente, e agora na posição de cócoras apoia o queixo no joelho, e prossegue seu monólogo. Seu semblante muda. Eu me sento num lugar um pouco deslocado, porém o suficiente para ouvir e acompanhar a interessante conversa entre eles. Comenta da sua infância no sertão quando cuidava dos bodes, das galinhas e da lavoura para o sustento da sua família. Comenta também que para ir à escola com seu irmão, precisava de uma hora de caminhada pelas estradas de terra. Leite de cabra, macaxeira plantada, água de poço distante; fala da pequena casa em que morava com seus pais e sete irmãos.
Que, com aquela música que cantou, dançava forró com alguns dos poucos amigos vizinhos que se reuniam, em festa de São João. Entre um argumento e outro, ele manteve um monólogo constante e ininterrupto com o seu outro “eu”, refletido no pedaço de espelho.
Toca a sirene sinalizando o fim do intervalo do almoço.
O garoto pega o pedaço de espelho e o joga na caçamba de entulhos. Assim se encerra o momento revivido de uma parte da sua vida “projetada” no espelho, e compartilhada com seus colegas de trabalho. Os três caminham em direção às suas tarefas ficando para trás, jogado no meio dos entulhos, o espelho que fez surgir aquele curioso e momento único, na vida deles. Eles seguirão suas vidas, e como será que levarão esses momentos vividos dessa forma tão peculiar? Será que refletirão, individualmente?
E aquele espelho? Quantas histórias e imagens devem ter passado diante dele? Quantos sorrisos, quantos olhares contemplativos, quantas lágrimas silenciosas deve ter presenciado? Quantos e quantos olhares foram refletidos nele...
Vivenciei junto com os rapazes uma grande lição, me tocou muito presenciar aquele “desabafo” do garoto do sertão.
O garoto ficou envolvido na sua existência do passado e trouxe à tona os momentos de lembranças, ora felizes ora tristes, ora engraçadas. O espelho apenas absorveu suas palavras, emoções e sentimentos. Não emitiu quaisquer críticas e muito menos deixou palavras de aconselhamento. Ouviu quieto, e calado ficou durante o desabafo. O espelho não demonstrou arrependimento e nem expôs seu sofrimento para com os outros. Guardou tudo e foi lançado para o vazio.
O garoto não percebeu que o espelho refletiu não somente a sua imagem, mas no fundo também mostrou o infinito céu azul, mostrou as nuvens que passavam livremente, e mostrou também o reflexo da luz do sol; demonstrando que a sua vida está inserida em torno de muitas outras referências ainda maiores, e é assim banhada por infinitas preciosas possibilidades. Possibilidades que se abrem e se materializam conforme o desejo e despertar de cada um.
Assim, esse pequeno pedaço de espelho pode nos mostrar que mesmo absorvendo, não precisamos reter as mágoas, tristezas e pesares da vida. Existem momentos marcantes e difíceis de serem deletados, porém possíveis de serem superados.
Como uma imagem refletida no espelho, como uma ilusão que na verdade é; aqui neste plano tudo é passageiro, tão passageiro que mais se assemelha com uma rápida projeção holográfica. Quando dermos conta já se apagou, já passou, ficou para trás, “não existe mais”.
E daí o que ficou foi o reflexo, como o reflexo da imagem dentro do espelho, que parece existir, mas não existe.
Temos um Universo que nos acolhe e nos envolve; estamos inseridos e banhados numa corrente fluídica imersa no infinito fluido universal, nos ligando uns aos outros, todos em um e um ao Todo, ao nosso Criador.
Ao incorporarmos isso, de forma plena e absoluta, estaremos em estado irradiante. Projetaremos apenas luz, não mais imagens... apenas Luz,
SIMPLESMENTE LUZ!
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