Em busca da confiança perdida
No terminal de ônibus da cidade de São Paulo, estava distraído conversando com um grande amigo. Não percebi a aproximação de um homem, que chegou com um largo sorriso e pedindo licença para me dar um abraço. Lembrei-me imediatamente dele, embora o tenha conhecido numa situação um tanto inusitada.
Há alguns anos, estava voltando de São Paulo para a cidade onde moro. Do meu lado sentou um homem, estava com uniforme da empresa do ônibus em que estávamos. Pelo horário, supus que ele estaria retornando para o seu merecido descanso. Irrequieto, estava nervoso e balançando as pernas. Eu o cumprimentei e me apresentei. Senti que ele não queria conversa. Parabenizei pelo trabalho de motorista e disse que a família espera sempre, em oração, o retorno para o lar.
Nesse instante ele se posiciona melhor no banco, afirma que não está indo para casa dele, e sim para a casa da sua mãe. Girava o anel de casamento no seu dedo, tirava e colocava de volta, cabisbaixo e triste. Percebi que algo errado estava acontecendo no seu casamento; mas não querendo ser intrometido, disse que visitar a mãe é um ato muito bonito.
Ele responde dizendo que sempre a visita. Nesse dia, porém, estava indo para a casa da mãe porque um flagrante o fez sair de sua casa. Coloca sua cabeça entre as mãos, debruçando sobre as pernas. Levanta a cabeça, e numa abertura de conversa ele começa o diálogo.
Disse que ele havia sido convocado para trabalhar naquele dia, mas seria para levar um grupo de pessoas a um lugar bem longe, e que ficaria três dias fora. Saiu no meio da madrugada para a garagem dos ônibus. Chegando ao local, foi informado que esse percurso precisou ser adiado, a pedido do cliente. Então, querendo surpreender a sua esposa com mais tempo juntos, comprou flores e lanches para o café da manhã. Porém, ao chegar na sua casa, presenciou uma cena que custou a acreditar. Chocado, testemunhou a traição da sua esposa com um alguém, que se dizia amigo, há um bom tempo.
Com os olhos vermelhos e marejados em lágrimas, pediu desculpas pelo desabafo; e seguiu me contando em detalhes o tamanho do sofrimento e da dor que estava sentindo.
Após sentir com ele toda sua dor, seguiu-se uns bons minutos de silêncio. Resolvi então quebrar o silêncio, e dialogar com ele um pouco mais. Me lembrei dos seguintes dizeres: “Ai de você, traidor, que não foi traído! Ai de você, destruidor, que ainda não foi destruído! Quando você parar de destruir, será destruído; quando parar de trair, será traído."
Essas palavras citadas na Bíblia, são de profunda interpretação filosófica.
Para existir este ato é preciso a participação de dois lados, e a ação para tal. Seja essa ação entre as pessoas, ou entre você com você mesmo.
Traição é um assunto muito comum, e muito presente nos nossos cotidianos. A todo momento ouvimos alguém abordando sobre ele, quer falando de si próprio ou mesmo mencionando alguém conhecido.
Não é por ser muito comum que é bom; é entendido como um certo tipo de desonestidade.
Quando se diz traição, quase que automaticamente, se pensa em traição de uma relação romântica afetiva, no entanto traição está inserida em todas as esferas de relacionamentos. Pode ser de amizade, de trabalho envolvendo o relacionamento profissional, entre familiares, parentes, enfim, onde há convivência de seres humanos, está lá presente este tipo nocivo de comportamento. Faz parte da índole do ser humano, uma característica clara de não amadurecimento.
Como podemos entender que houve uma traição?
Quando da quebra de lealdade, quando da perda do conceito de fidelidade, resultando diretamente na quebra da confiança em relação a uma determinada pessoa. Quando há uma quebra de aliança.
Perdeu uma das últimas novidades das Crônicas? Então confira a seguir: Podcast Crônicas #5 | Grandiosidade do Perdão
Só vai existir traição de pessoas muito próximas a nós. Não existe traição de pessoas distantes ou que eventualmente nos encontramos, pois lealdade ou fidelidade só passa a existir após um convívio mais íntimo, onde houve trocas de sentimentos, onde se dividiu a vida com essa outra pessoa.
Não podemos confundir traição com frustração de expectativa, são coisas diferentes e nascidas de formas diferentes. Envolvem outros tipos de processos dentro de um relacionamento. Numa traição há muitas quebras de sentimentos importantes, capazes de desestruturar e até destruir muitas vidas. A confiança perdida dificilmente volta a ser a mesma. Quebras que resultarão em muitas rachaduras, em variados graus, de variados níveis. A traição não é algo espontâneo, ela nasce de vários movimentos articulados, é planejada, pensada, arquitetada para a sua execução.
Apontada como um dos grandes vilões responsáveis pelas separações, e términos de relacionamentos. Pode-se constatar isso, pelo enorme número de divórcios existentes nos dias de hoje.
A dor de uma traição é profundamente intensa, tanto que muitos tomam atitudes extremas. Atua acelerando quadros como a depressão, por exemplo.
Da depressão à vingança, passando por tantas outras situações de desespero. Superar a sua dor é algo muito torturante, sempre acompanhada de angústia, raiva, tristeza, decepção, incertezas, medo, ansiedade, ciúmes, enfim, de um emaranhado de pensamentos e sentimentos ruins e autodestrutivos. Frequentemente até com sentimento de culpa, pois as pessoas tendem a se perguntarem o que fizeram de errado, para que aquilo acontecesse. Quanto mais tempo demorarem as curas das cicatrizes, tanto mais chances se esgotarão, tirando as possibilidades de se encontrar novas alegrias e novos caminhos. Muitas vezes, a vida passa e a pessoa fica presa naquela profunda tristeza.
Relacionamento humano deveria ser algo simples. Mas se torna tão complexo, que muitas vezes, nos foge até de entendermos seus variados comportamentos. A nossa atual vida é resultado de muitas experiências contraídas nesta, ou em outros longínquos tempos que não nos recordamos; onde fomos adquirindo e incorporando aos poucos, os valores, as verdades, os princípios, que influenciam as nossas atitudes de hoje. Portanto, fazendo uma leitura individual, cada um de nós é possuidor de características próprias; onde apenas nós mesmos, podemos decidir fazer mudanças nos nossos comportamentos.
Entra aqui aquele velho ditado nos lembrando, que ninguém muda ninguém, se esse alguém não quiser. E isso é fato.
Partindo desse princípio, quando temos aquela pessoa que já tem um caráter adúltero, que não tem a fidelidade ou a verdade como valores, que encara como normal ter uma vida paralela, que viveu em ambientes onde a realidade era essa etc. Então, essa pessoa dificilmente mudará o seu comportamento.
Numa vida a dois ou numa vida em conjunto, é mais que óbvio, que as divergências e desacordos existirão, pois vamos criando visões e conclusões próprias, de acordo com as situações inerentes à nossa existência. Divergências que deveriam ser encaradas como partes de aprendizados, proporcionando oportunidades para o surgimento de novos olhares e respectivos crescimentos, mas geralmente não é isso o que acontece.
Uma escolha equivocada, muitas vezes, compromete toda a vida de uma pessoa.
Porém, analisando por um outro ângulo devemos entender que o acaso não existe, então o que nos acontece está relacionado ao nosso processo de desenvolvimento. Quer queiramos ou não, quer entendamos ou não, quer aceitemos ou não, estamos sob determinadas Leis que regem a tudo e a todos, em todos os seus aspectos e em todas as suas dimensões. Quando chegamos a esse entendimento, a clareza se faz mais presente, a compreensão se abre, trazendo os elementos necessários para um olhar mais tranquilo e sereno, mesmo no meio de situações angustiantes.
Num relacionamento de casal, quando é dito que o amor acabou e como efeito entrou em cena a traição; notadamente podemos afirmar que quem conhece o verdadeiro amor, esse jamais se extingue por si. Poderia dizer que respeito e admiração se sucumbiram, e não foi um verdadeiro amor, foi sim um investimento que não deu certo.
Ahh, mas falar é fácil, difícil é superar a raiva, o ódio de uma traição....
Um dos maiores exemplos de traição, para nós ocidentais, vem da história bem conhecida do nosso Grande Mestre. O Mestre sabia e afirmou haver um traidor entre eles, mas não apontou ou disse quem era. No ato do beijo na testa, e por poucas moedas Judas o entregou; e assim se cumpriu a história.
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Não precisando ir tão longe, outra história semelhante aconteceu aqui, há dois séculos. Joaquim Silvério dos Reis foi o principal delator da Inconfidência Mineira, que foi uma das primeiras tentativas de independência do Brasil, do domínio português. Silvério dos Reis delatou, e o movimento foi debelado com a morte de seu principal agente, Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes. Com isso, o nome de Silvério dos Reis ficou associado no imaginário brasileiro, à figura do traidor. Silvério dos Reis, que chegou a fazer parte do movimento, resolveu delatar seus companheiros para em troca resolver seu problema, ter sua dívida perdoada pelo governo. Semelhanças na traição?
Isso gera outra pergunta: Devemos perdoar o traidor?
Muito se ouve dizer que se deve dar uma segunda chance, ou mesmo que devemos perdoar, pois todos somos imperfeitos. É evidente que não existe uma única resposta para tal.
Se nos basearmos na ciência, ela dirá que uma pessoa que já traiu uma vez, terá mais chances, percentualmente, de trair novamente.
A ciência pode nos ajudar a sermos mais prudentes, a termos melhores tomadas de decisões, a nos propormos a pensar com maior racionalidade. Se sairmos da esfera científica e entrarmos mais numa esfera filosófica, talvez tenhamos um maior leque de abertura, para então, partirmos com novas visões e questionamentos.
E o arrependimento?
Ele pode vir acompanhado de mudanças nos comportamentos, pode prometer novas propostas, mas em geral não dura muito. O arrependimento não garante que não haverá mais traição.
A não ser que haja uma real conscientização dos atos praticados, e uma real intenção de mudança de vida. Manter-se fiel requer amadurecimento e muita responsabilidade.
“Perdoar que ser perdoado”, da oração de São Francisco de Assis. Tem uma profunda abdicação para que o Eu interno fique bem; ficar remoendo prejudicaria a mente, o coração e a saúde.
Muitas vezes, a pessoa mesmo traída, quer continuar a viver junto. Por variadas razões pode achar que não consegue viver sem o outro. Cada pessoa tem os seus valores, suas necessidades, sua dinâmica, e são muitas as questões envolvidas implicando na situação.
Sentimento é sentimento, saber exatamente o quanto ele morreu ou vai sobreviver é algo penoso, é algo que pode consumir e exigir muita energia.
Perdoar é o melhor caminho, porém, devemos nos perguntar se realmente queremos isso. É bastante comum, o perdão se camuflar dentro do desejo de se querer vingança. Aquele desejo enorme, de que a pessoa precisa pagar pelo que fez. Nasce o desejo de castigar o outro, de fazê-lo passar pela mesma humilhação e pela mesma dor. No entanto, por mais que se tenha sido injustiçada, a dor será da pessoa que está sentindo, e ela não será curada com uma vingança. Na verdade, ao se arquitetar uma vingança, a pessoa estará criando prisões mentais, nocivas e corrosivas para a sua alma.
Quando se quer fazer da vida do outro um inferno, há lá no fundo do seu ser uma tentativa de querer ser feliz, uma busca de felicidade que lhe foi negada.
Esse tipo de tentativa de querer uma justiça prejudicando o outro, é uma forma imatura de busca.
Todas as vezes que agredimos o outro, automaticamente nos aprisionamos. As prisões mentais vão se avolumando, e caso não sejam conscientizadas, podem se tornar tão densas a ponto de se petrificarem; e quando de uma queda, serem tão estilhaçadas que seus pedaços não mais poderão ser restaurados. Perdeu-se a própria vida e a alma no meio de uma vingança.
Perdoar, perdoar sempre!
Porque o perdão é libertador, é libertador para nós.
O não perdão constitui uma prisão.
Perdão não significa justificar e reconhecer, que o que a pessoa fez não causou nenhum dano, sofrimento ou que não foi ruim. Perdoar, não obriga aceitar novamente a pessoa no nosso convívio; podemos optar por seguir a vida sem a presença dela. Essa pessoa poderá se tornar apenas um conhecido, mais um que passou pela nossa vida.
Muitas vezes pode acontecer o contrário, da traição ser o indicativo para se parar, para se refletir bem, e talvez até refazer o relacionamento. Se temos do nosso lado uma pessoa que sempre foi companheira, amiga, que sempre esteve presente nos momentos felizes e nos momentos difíceis, e por razões que fugiram de suas mãos cometeu um ato de traição; poderá sim haver um novo construir de vida juntos. Tudo vai depender dos valores de ambos, de tudo que viveram até aquele momento, de serem realmente parceiros; enfim, de se ter colocado todos os pontos numa balança, para a sua devida pesagem.
Quando o casal decide e quer, e parte em busca de uma ajuda profissional, em busca de aconselhamento, é possível que consigam superar. Essa reconstrução deve ser feita a quatro mãos, com apenas duas não dará certo; os dois precisam realmente querer. Pode ser o momento de buscarem nomear, entender e organizar as suas emoções e sentimentos. De ressignificarem o que não está bem, quebrando velhas crenças e paradigmas que traziam, sem ter consciência. Traçando novos acordos, cumprindo e mantendo sempre muito diálogo, com sinceridade e transparência.
A dor e as dificuldades fazem com que surjam novas forças, novas habilidades, e assim podem surgir novos caminhos. Quando decidir se reconstruir, a dor que for trabalhada vai passando, não será num estalar de dedos como numa mágica, ela precisa passar por todo um processo de diluição. Levará muito tempo, e a paciência vai precisar ser exercitada, paralelamente. É como vivenciar um luto, nesse caso um luto em vida.
Não será, obviamente, como antes, mas se decidiram seguir juntos, se houve realmente o perdão, pode acontecer de se refazer toda a relação, e de seguir de uma forma até melhor que a anterior. O casal poderá sim, ser um casal que vai se relacionar melhor do que se relacionava antes; dependerá unicamente dos dois.
O perdão é individual, mas a confiança tem duas partes e deverá ser tecida juntamente, se entrelaçando entre o casal.
Leia a Crônica anterior a esta, caso ainda não tenha visto: Crônica #68 | Teorema da justiça
Perdoar significa optar por não mais viver sob o peso da traição, é deixar no passado e virar a página daquela fase da vida. O perdão dificilmente é algo que acontece de imediato, é um processo que requer uma construção, uma conquista interna que vai sendo trabalhada em todos os momentos, em todas as situações que for sendo requisitada.
Depois de aproximadamente dois anos, ocorreu esse nosso reencontro numa das plataformas do terminal de ônibus de São Paulo. Agora trabalhando numa outra empresa, de porte maior, ele estava bem e feliz. O fato dele ter me reconhecido e ter vindo me dar um abraço, muito alegrou meu coração.
Perdoar e acreditar que a Vida trará para a pessoa, no momento e tempo certo, tudo o que ela merece e precisa para o seu desenvolvimento, dentro e de acordo com o percurso de sua evolução.
Infalivelmente isso acontece.
Aquele homem estava com uma nova vida, havia mudado de cidade e tinha seus filhos na sua companhia. Optou por seguir seu caminho sem a sua ex-esposa. Disse ele que estava feliz por ter feito essa escolha, pois ela muito instável também nos relacionamentos posteriores, estava cada vez mais no lodo dos seus próprios atos.
Mesmo com a dor presente, se pudermos optar por não sofrer, podemos conseguir agradecer. Agradecer porque aquela pessoa saiu da nossa vida.
Agradecer porque aquele mal se foi, dando abertura a novas outras oportunidades.
Enriquecendo agora a nossa vida com o elemento aprendizado, e mais maturidade adquirida.
Toda escolha passa por um livre arbítrio. É, portanto, algo individual, algo intransferível.
As influências externas, pela família, amigos ou quaisquer outras fontes, existem; mas devemos entender que a escolha final, a decisão final é da pessoa.
Causa e efeito existem e andam juntos, e com eles o merecimento ou não. Por opção e no direito que nos foi dado de livre escolha, podemos optar por nos envolvermos em coisas construtivas ou destrutivas; partirmos em busca de conflitos ou de harmonia, assim como da paz, liberdade e justiça.
A escolha pede posicionamento, pede decisão, pede organização dos sentimentos.
Assumir o autoconhecimento como um caminho de crescimento, é tomar posse de uma grande variedade de ferramentas. Escolhas certas e melhor assertividade surgem como resultado.
Vencendo as faces negativas, tendências e experiências ruins que fizeram parte de nossos processos de evolução, e que temos conhecimento serem passageiros; vamos nos servir de medida para comparação, as buscas das conquistas do bem.
O bem com todas as suas alegrias derivadas, e suas emoções felizes.
O bem despertando e mantendo em permanência o amor, que por natureza, já nos é espontâneo.
Nosso estado de amor, que nos vivifica conosco mesmo, com todos os outros, e com toda a Vida!
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Você já conferiu o último vídeo do neoPod lá no YouTube do Portal? Nosso cronista Otavio Yagima fez uma participação especial, e o encontro está imperdível; confira no player aqui embaixo e também visite as demais postagens no YT da neo!