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Foto do escritorOtavio Yagima

Crônica #68 | Teorema da justiça

Atualizado: 19 de set. de 2022

Liberdade com responsabilidade



Uma sexta-feira à noite, ocupando dois horários seguidos, e uma longa aula um tanto desencorajadora para assistir. O relógio marcava 20:00 horas.


Eu cursava engenharia no Japão, e meu professor surpreendeu com um conteúdo inesperado, nessa aula de Cálculo. Estávamos absolutamente acostumados com as complicadas matérias de física, de cálculos estruturais com suas difíceis fórmulas, cálculos matemáticos, e tudo o que envolve engenharia... No entanto, algo mais complexo surgiu para agitar a minha mente. Lembro-me em detalhes.


Ele, como padrão usava roupa social, sempre com uma gravata que acolhia as estações do ano. Gravata com tonalidades em vermelho no verão, amarelos no outono, acinzentados no inverno, e azul ou verde na primavera. Acompanhado sempre com um jaleco, às vezes um tanto manchado com tintas e terra, como consequência das atividades do laboratório experimental de terremotos. Canetas de várias cores no bolso do jaleco, sapatos bem engraxados, e cabelos sempre penteados marcavam as características desse sensei (professor em japonês).


Naquele dia reparei que usava um paletó impecável, como sempre, mas algo diferente me chamou a atenção. Estava com uma gravata preta. Carregava no braço esquerdo seu jaleco, junto com pastas de anotações e livros. Após adentrar na sala, todos nós nos levantamos, e em silêncio curvamos em respeito a ele, cumprimentando-o. Como de costume, ele nos cumprimenta de volta com um boa noite, pede que sentemos e que pegássemos o livro daquela aula. Num ritual padrão repetitivo, esse sensei limpa sua mesa com um lenço, deixa suas anotações numa mesinha de canto, pendura seu jaleco na cadeira, e fala resumidamente da matéria que correspondia àquela aula.


Inicia uma exposição no quadro negro, fica imóvel por alguns segundos, algo estava diferente.


Cabisbaixo, tira um giz vermelho e escreve na lousa o ideograma ai, que significa amor em japonês. Ficamos sem entender. Dos nossos olhares brotavam e saltavam pontos de interrogações.


Ele se vira para a classe, posiciona-se diante da mesa, cruza os braços, olha para cima, caminha ora para a direita e ora para a esquerda. A classe continua em silêncio, esperando a manifestação do sensei.


Perguntei se estava tudo bem, apesar de saber que muito raramente alguém ousaria perguntar numa situação daquela, onde se esperaria que o próprio professor continuasse. Todos voltaram seus olhares para mim. O sensei balançou a cabeça que sim, e então continuou sua exposição.


- “Hoje não falarei sobre números, mas, sim sobre ai(amor)”, e apontou para o kanji (ideograma) escrito na lousa. “Vocês que serão futuros engenheiros projetem, fabriquem, e usem os robôs em prol do homem, mas, não sejam engenheiros robôs. Não deixem que lhes construam e nem sejam manipulados. Sejam autênticos. Jamais se esqueçam que, acima de tudo, existe um Criador e Nele deveremos nos curvar”.


Surpresos e admirados, permanecemos em silêncio com as suas palavras ecoando na mente. Acabara de ficar mais complexo que qualquer teorema. Um mix de razão e emoção dominou a classe, e continuamos a ouvi-lo.



Perdeu uma das últimas novidades das Crônicas? Então confira a seguir: Podcast Crônicas #5 | Grandiosidade do Perdão



- “Digo isso por duas razões. A minha filha se foi” ...


No silêncio que ali já reinava, agora só se podia ouvir os batimentos acelerados dos nossos corações. Já tínhamos conhecimento da hospitalização da criança, há meses, por leucemia.


Logo em seguida ele fala em voz alta:

- “Mas agora vou falar sobre responsabilidade e justiça”.

- “Vocês ainda são meninos, brincam e não tem muito teor de consciência. Fazem engenharia porque realmente gostam, acham bonito, ou simplesmente porque os pais querem? Quem paga seu curso? Acham que ter o título de engenheiro é algo esplendoroso?”


O sensei naquele dia estava muito analítico. Foi a primeira vez que senti uma forte pressão, uma forte pontada na mente que de início me deixou paralisado, mas que aos poucos foi cedendo a uma abertura cheia de questionamentos.


- “Só lhes digo uma coisa, protótipos de engenheiros! Para mim, já não importam as notas que tiram nas sabatinas. Não me interessa se você aprendeu tudo direitinho aqui; porque cada um será responsável por seus atos. Lembrem-se que vocês deverão ser homens de honra, e guardem esse dia, essas palavras que aqui profiro. Não espero homenagem e nem agradecimento; se quiserem me odeiem. Mas, sejam homens dignos e preservem o sobrenome que carregam.”


Precisamos ser responsáveis, pensei. Era a primeira vez que sentia, de fato, o peso dessa palavra.

Responsabilidade vem do latim respondere, e significa estar em condições de responder pelos atos praticados, de justificar as ações tomadas. Nós temos a liberdade de escolhas, essas escolhas se transformam em atos que vão ter suas consequências; então obviamente, seremos responsáveis pelo resultado dessas escolhas. Liberdade e responsabilidade sempre caminham juntas. Se sou livre para escolher meus atos, serei responsável pelos seus resultados. Além disso, se as nossas escolhas podem ter influência na vida de outras pessoas, devemos ser responsáveis por ambas, pelas nossas escolhas e pelas pessoas. Responsabilidade social diante das outras pessoas, justiça na sociedade.


Depois de quase meia hora de um intenso sermão, de palavras esmagadoras, o sensei simplesmente sai como entrou, carregando seu jaleco nas mãos. Não falou nada sobre o kanji que havia escrito na lousa, nem da sua filha, e muito menos do conteúdo complexo que nos passou. Semanas se passaram, e persistiu entre os colegas a tentativa de entender aquela aula diferente. Todos pensavam que a causa tinha sido a perda da sua filha. Mas, na minha percepção, existia algo mais por trás do ensinamento que ele queria transmitir.


Durante o curso eu participava do laboratório da construção de uma hidrelétrica, e a elaboração da sua respectiva maquete. Meu mentor era justamente esse professor, e eu ficava na parte da tarde participando da construção dessa; com introdução de sensores de testes contra terremotos.

Depois de 49 dias de luto, em respeito à sua filha, fiquei ao seu lado e lhe disse:


- “Sensei, sei que os alunos daqui não tem costume de perguntar muito, mas eu preciso lhe perguntar algo, já que no encerramento do meu curso voltarei para o meu país”.


- “É sobre aquela aula específica, não é? Você foi o único aluno que perguntou se eu estava bem naquele dia, e já esperava seu questionamento”. O sensei fala agora com muita serenidade.


- “Sim sensei, é sobre aquela aula. Tenho dois questionamentos. A primeira, é porque o senhor escreveu um único ideograma ai, amor. Não sabia que pudesse caber essa palavra na nossa profissão; valor profundo e incompreensível para nós, que fomos condicionados a resumir tudo em números. Penso que se relaciona com a sua filha, seria mesmo isso?”


O sensei, debaixo da mesa de maquete, tentando conectar alguns eletrodos sensores, suspira e começa a falar.


- “Ela só queria ir comigo no parque ver o urso panda, e tomar um sorvete. Ficar na beira de um rio, correr atrás das borboletas, fazer piquenique debaixo das árvores de sakurá (cerejeira). Ela só queria que a carregasse nas costas (ombu)... só queria pular corda, brincar de faz de conta. Só queria mostrar o chapéu da escolinha, seus desenhos. Ela só queria” ...


Um silêncio pairou no ambiente. O sensei agora, estava deitado sob a mesa ligando os fios. Percebi lágrimas escorrendo nos cantos dos seus olhos. Retira os óculos de segurança e enxuga.

Fiquei sem palavras, fiquei sem ação.


- “Qual a outra pergunta meu aluno?” Interrompe, o sensei, o meu triste silêncio mental...


- “O senhor mencionou duas palavras: responsabilidade e justiça...” E antes de completar a pergunta, o sensei que havia terminado de conectar os sensores, se levanta e se senta num banquinho. Com uma fisionomia mais séria que o normal, ele começa a falar.



Quer saber mais do podcast das Crônicas?Veja aqui onde encontrar todos os episódios da 1º temporada



- “Naquele dia, uma triste notícia eclodiu aqui na faculdade. Foi sobre um acidente numa linha de montagem, de uma indústria automobilística. Havia muita controvérsia no relato do fato, e muito se discutia sobre a culpa do mesmo. Uns diziam ser do fabricante do braço robótico, outros diziam ser da própria indústria, pela sua falta de cuidados na questão da segurança, de treinamentos etc. Esse robô provocou a morte de um homem, que acompanhava a execução do serviço dessa máquina. E o engenheiro chefe responsável pela sua criação, foi um dos meus notáveis alunos, dessa escola aqui... Inteligente, ativo e criativo. Apostei no sucesso dele, o que de fato aconteceu brilhantemente. Porém, por trás daquele engenheiro, tinha o chamado ser humano, que erra, equivoca e falha; e que nessas falhas podem atingir e ferir outras pessoas, como de fato aconteceu.”


Logo pensei, que falha teria sido essa? Como estaria esse engenheiro, com toda discussão girando em torno de responsabilidade? Uma pessoa, só pode ser responsável por seus atos se for livre. Será que ele foi, realmente livre, para todas as tomadas de decisões dentro daquele projeto?

A justiça, como seria medida?


O conceito platônico diz: “dar a cada um o que lhe corresponde, segundo sua natureza e seus atos”.

A justiça determina que se dê a cada um aquilo a que tem direito, o que lhe é devido, ou aquilo que merece.


Cabisbaixo, o sensei continua colocando o seu ponto de vista.


- “Lembre-se sempre, meu querido aluno. Os acidentes são provocados e os problemas são criados. Nada justifica um acidente, nada! Ou melhor, nada acontece ou surge do nada; algo fez que entrou em colapso, e por consequência eclodiu num erro. Sempre há e haverá o princípio para desencadear. Os problemas que temos são criados pela nossa mente, que também tem sua origem, há que se saber disso. Com o passar da idade vamos vendo e constatando cada vez mais isso, de forma muito clara e evidente. Ignorância existe sim, mas é porque não observamos direito a vida, e nem buscamos sabedoria... estamos sempre em zonas de conforto”.


- “Publicamente o engenheiro declarou e admitiu seu erro no projeto. No funeral curvou-se diante dos familiares e colaboradores, e pediu perdão. Agora me diga caro aluno, esse ato é de humilhação ou de honra? Foi ao julgamento, criou-se uma polêmica entre homem versus máquina. Falou-se em verbas indenizatórias, seguro acidente, prejuízos causados, recuperação financeira; a desonra da empresa fabricante. Falou-se de tudo, porém ninguém, nenhuma reportagem foi em busca do estado que ele ficou...”


Sensei se levanta e vai até um balcão. Pega um ban-chá (um tipo de chá verde japonês), e me oferece com um biscoito tradicional da região. Agradeço e acompanho aquele pequeno intervalo, hipnotizado com tantos grandes ensinamentos. Eu continuo em silêncio, e ele prossegue no seu monólogo.


- “Estamos no boom de automatização nessa década de 80. Uma corrida frenética para substituir a mão de obra humana. Eu concordo, e sei que o país precisa disso para atender aos interesses econômicos. Mas, com a perda da minha filha, a Vida me fez frear para reflexões. O que nós professores estamos fazendo para o futuro do homem? A vida não faz sentido se trabalhamos como máquinas. O amor muitas vezes é esquecido e deixado de lado. Ele é muito romântico para estar dentro das empresas, dos negócios, do mundo corporativo. Eu não dava muito valor pelas pequenas coisas que tinha, e hoje sei o quanto eram valiosas. Sekinin (responsabilidade) é sempre empurrada para as costas dos veteranos, e kôsei (justiça) é deixada nas mãos humanas, escritas em leis...”


- “Mas o caso da justiça pode tomar outros rumos…” Assim que comecei a falar ele me interrompe.


- “Não é sobre quem errou, sobre condenado ou não. É simplesmente porque dentro de nós, existem vários botões que vieram ligados pelo Divino e que desligamos; como a compreensão da paz, da harmonia, do respeito, da felicidade, da liberdade, do amor... E ligamos os botões do egoísmo, da ganância, do ódio, da inveja... não faz sentido isso! E o pior, é que muitas vezes, só percebemos isso quando da perda de vidas próximas de nós, das pessoas que amamos. Entender que por minha causa, uma vida foi tirada?”. Assim, tristemente, o sensei comenta.


Dentro de alguns conceitos clássicos a justiça foi recebendo definições variadas, conforme o seu caminhar paralelo com a humanidade. Existia na antiguidade a vingança como justiça, a famosa lei do olho por olho e dente por dente. Acreditava-se que o mal deveria retornar na mesma proporção do praticado, então a punição era sempre imposta de forma semelhante ao crime cometido. Esse conceito, bastante antigo, foi chamado de justiça como retribuição.


Uma outra definição é da justiça como igualdade, onde as pessoas deveriam ser tratadas de forma igualitária, no entanto, não se praticava para todos. Perdeu-se o verdadeiro sentido.


Existe uma definição bem mais recente, a justiça como liberdade, porém foi muito pouca ou quase que inexistente a liberdade cedida. Enquanto existir uma sociedade muito heterogênea, enquanto os sentimentos forem variáveis em relação ao que se chama de justo; maior será a pluralidade dos conceitos de justiça.


Inspirado e influenciado por algumas linhas, entre elas a filosofia grega de Pitágoras e do Estoicismo; Ulpiano (jurista romano), deixou definido três eixos imprescindíveis do direito. Seriam eles: viver honestamente, não prejudicar ninguém, e dar o que corresponde a cada um. Fazer com os outros aquilo que você gostaria que fizessem com você; entra como um preceito determinante para uma justa convivência. Essa visão, foi a grande base para o filósofo Immanuel Kant elaborar a concepção onde diz, que as pessoas devem ser tratadas visando o melhor para elas, e para toda a sociedade. Onde o ser humano é visto como insubstituível, não havendo, portanto, preço a se avaliar.


A justiça é absoluta?

Ela valeria para todos os seres humanos e para toda sociedade?

Ou seria variável?

Variando conforme a sociedade, o país, a época com sua realidade vigente, ou seja, historicamente e culturalmente?

O que é justo para mim, seria obrigatoriamente justo também para você?


É complexo se definir categoricamente, talvez devêssemos entender que o sentimento de justiça é universal, ele habita e é inato em cada um de nós, e nele esperamos que uma ação seja tomada em relação a um determinado acontecimento.

Haveria uma única lei que pudesse beneficiar igualmente a todos? Seria possível se atingir tal nível de entendimento?


O conceito de I. Kant é bastante interessante para refletirmos, diz ele:

“Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal. Age de tal forma que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo, como fim e nunca como meio”.


Que possamos encontrar e ter equilíbrio nas nossas ações, para que desviemos do mal, para que façamos o bem, e assim que não venhamos ferir ninguém.

Acima de qualquer justiça que possamos implantar no nosso mundo, haverá uma que será absoluta, que não cometerá erros... a supremacia da Justiça Divina. E as leis que a regem são universais, iguais para todos, blindadas contra quaisquer manipulações, a Justiça da justiça!



Leia a Crônica anterior a esta, caso ainda não tenha visto: Crônica #67 | Herdeiros de uma geração



Naquele momento, meu chá já tinha esfriado. Esqueci de tomar.

Esqueci do mundo ao meu redor, entrei no universo do sensei. Eu não tinha tanto conhecimento para devolver-lhe em palavras acalentadoras.


Uma semana depois dessa conversa, esse ex-aluno aparece no laboratório, procurando pelo sensei. Pediu perdão em prantos e ficou ali por horas. Expôs sobre culpa e arrependimentos, e assumiu a culpa para si mesmo, por mais que o projeto tivesse sido desenvolvido por uma grande equipe.

Entristeceu-se com a vergonha que causou à sua família.

Disse que passara noites em claro pensando em que momento e situação errou, e precisou rever toda sua jornada como engenheiro. Comentou que até cogitou suicídio, pois a carga se tornara pesada demais para os seus ombros. Mas que por fim, resolveu que iria se mudar para o interior do país e se dedicar à agricultura, junto de seus pais.


Com o meu pensamento completamente absorto em tudo o que se passou naquela tarde, a maquete me pareceu pequena demais. Minha mente estava repleta de questionamentos, de variáveis que precisariam ser colocadas dentro de algo mais absoluto. Uma infinidade de novas visões em relação à profissão, às condutas, à vida. Arrependimento, perdão, amor no seu estado amplo, respeito, harmonia, humildade, ser humano... ser realmente humano, todo esse leque se abriu no decorrer daquela tarde.


Ao sensei, meu grande respeito e admiração por ter se tornado um precioso mestre, que saiu da ciência exata para a abstrata, semeando muitas variáveis para serem desenvolvidas; não só pelo profissional engenheiro, mas pelo protagonista por trás de quaisquer títulos, responsável pelo controle das rédeas da sua vida.


- “Sensei kansha shite imassu, hontôni arigatou gozaimashita”.

(“Sensei, minha gratidão e o meu verdadeiramente muito obrigado”.)



 


Que tal baixar e compartilhar trechos dessa crônica com a galera?




 


 

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