Marcas do passado.
O que você encontrará nesta crônica:
"Você já foi vítima ou passou por situações de bullying em algum momento da sua vida? Raras são as pessoas que escapam dessa experiência, e surpreendentes são suas histórias. Mais comum nas escolas, onde personalidades e identidades em formação convivem em constante confronto de formas desafiadoras. Porém, ele também pode surgir em outros ambientes, refletindo os desajustes internos de quem o pratica. Existem estratégias eficazes para transformar a dor do bullying em força de superação? Como você contribuiria para criar uma cultura de empatia e respeito? Isso é possível no mundo atual?"
I. A escola.
Há algum tempo, fui tomado por uma tristeza profunda ao ler sobre um fato que dominou os noticiários: a morte de um jovem estudante, vítima de agressões por parte de colegas. O que hoje chamamos de bullying se transformou em uma tragédia. O termo, vindo do inglês, é derivado da palavra bully, que se traduz como tirano ou valentão. Essa palavra, bullying, parece ter se infiltrado em nossa linguagem cotidiana como uma sombra verdadeiramente persistente. Não é por acaso que ela carrega consigo um peso tão grande; afinal, representa um padrão de violência intencional e repetitiva, atingindo tanto o físico quanto o psicológico, cujas marcas podem ser tão profundas quanto fatais, como se reproduziu no caso dessa vítima.
Como pai, não pude deixar de me compadecer, não apenas com o pai da vítima, mas também com a dor intensa de todos os envolvidos. Independentemente das causas ou culpados, sabemos que, por trás de cada notícia, existem vidas, sonhos e famílias que foram profundamente impactadas. O agressor que feriu, os muitos que assistiram em silêncio e a vítima que sofreu, cada qual com suas histórias de dor e sofrimento. Não há justificativas que sustentem as agressões, que realmente precisam ser combatidas. No entanto, ao considerarmos que somos todos humanos, essa humanidade compartilhada nos obriga a refletir mais profundamente sobre nossas ações e suas consequências.
Enquanto lia sobre essa história, compadecido com as dores alheias, fui transportado para o início da minha própria vida escolar. Lembrei-me das alegrias, mas também das tantas dificuldades que compuseram minha trajetória, e, inevitavelmente, ficou evidenciada a complexidade das relações humanas, muitas vezes, tão frágeis.
Onde está o limite sutil, esse equilíbrio delicado que pode cruzar a linha entre o normal e o anormal?
Meus pais chegaram ao Brasil como imigrantes japoneses e, inicialmente, trabalharam arduamente em fazendas de café. Ainda pequeno, meu primeiro contato com uma escola foi em um prédio anexo a uma fábrica. Fui alfabetizado pela minha mãe em língua japonesa antes mesmo de ir a essa pequena escola, onde a maior parte dos alunos eram filhos de imigrantes japoneses. Não entendia muito bem o que estava fazendo lá, mas adorava os muitos gibis em japonês, os mangás, que ficavam na estante da sala. Fui depois colocado em outra escola, agora totalmente em língua portuguesa.
Além de mim, meus quatro amigos japoneses daquela pequena escola também foram para o mesmo Grupo Escolar. Íamos a pé, sempre juntos, com uma sacolinha costurada por nossas mães, onde eram colocados caderno, livro, lápis, borracha e um apontador. Fazia parte também uma lancheira com bolachas, uma caneca de alumínio, uma pequena toalha, escova de dentes e sal de cozinha como creme dental.
E essa nova escola se transformou em um forte desafio, pois somava-se à sua adaptação as questões de alguém como eu, que havia crescido em um mundo à parte, cercado por histórias e tradições japonesas. Lembro-me do nervosismo ao atravessar o portão pela primeira vez, sentindo a expectativa misturada com o medo daquele mundo ainda desconhecido.
Il. O silêncio da humilhação.
- “Hoje, muitos riram de mim, Hiro…” eu disse, com um nó na garganta, para meu amigo. Eu havia levado a lancheira, como era costume, não lembrando que a escola servia lanche e suco na hora do recreio. Fui chamado de “marica”, palavra que eu não conhecia, por causa da minha lancheira pendurada. Um deles pegou a lancheira e esparramou pelo chão tudo o que tinha dentro dela. Fiquei triste e com vergonha, sem saber o que fazer, pois todos estavam rindo e chutando o que estava no chão. Fiquei com medo do jeito bruto deles e das suas risadas debochadas.
Senti cedo o peso da intimidação e da humilhação. Muito triste e confuso, sem entender o porquê das repetidas atitudes repulsivas dos outros, fui-me retraindo ainda mais. Tinha observado que muitos já carregavam mochilas modernas nas costas, enquanto nós, os cinco amigos, ainda usávamos sacolas costuradas por nossas mães. Em meio a muitas risadas, aquele mesmo grupinho jogava água em nós e, como elas eram feitas de pano, o caderno e o livro acabavam molhados. Para não levar bronca, secávamos escondidos em casa, como se estivéssemos errados e fôssemos os culpados. Estranho sentimento era aquele; afinal, não tínhamos culpa. Talvez culpa por não saber nos defender ou por não reagir. Era difícil entender com clareza os sentimentos naquela época.
Os conflitos fazem parte da dinâmica social, e o bullying é bastante conhecido e comum nas escolas, que oferecem um ambiente propício, já que as relações estão em desenvolvimento contínuo. É um espaço onde diferentes personalidades e identidades ainda imaturas coexistem em intensa interação, e frequentemente de maneiras desafiadoras. Além das escolas, ele pode surgir em quaisquer outros tipos de ambientes: nos lares, entre casais, entre membros da família, no trabalho; onde há convívio entre pessoas, lá está ele. Circulando principalmente pelas redes sociais, aparece no mundo virtual como cyberbullying e, potencializado pela velocidade da internet irradia-se instantaneamente. Ele se alastra, acompanhando os desajustes internos das pessoas que o praticam.
O bullying é um problema que envolve grupos, onde o poder do coletivo é significativo.
Muitos desses agressores usam a violência em busca de poder e popularidade entre os membros do seu grupo. Eles tendem a apresentar instabilidade emocional, falta de empatia e uma visão pessimista da vida. Podem estar inseridos em famílias com exemplos vivos de atitudes de pouca sensibilidade moral e com uma escala de valores invertida. Em seu meio, pode predominar um sistema de educação sem limites, onde a violência verbal e física prevalece; assim, a educação emocional morre, sem empatia ou escuta saudável entre as pessoas. A incapacidade de reconhecer o outro como uma pessoa digna de respeito gera, como consequência, pessoas pouco sensíveis à dor e ao sofrimento alheio.
Um dia, Ryuji adoeceu e só fiquei sabendo do seu óbito quando compreendi melhor este mundo. Era tétano. O grupo se reduziu para quatro; continuamos companheiros no futebol e amigos nas tarefas. Fazíamos as lições de casa sentados debaixo de um enorme pé de manga no quintal de casa. Éramos como irmãos.
Um certo dia, no meio de tantos outros que nos maltratavam repetidamente, na saída da escola, o grupo de meninos cercou um dos nossos amigos, o Hiroshi. O motivo era que ele não falava português. Era um menino magro e quieto. Seu pai tinha uma marcenaria, e confeccionávamos carrinhos de madeira para brincar. Vendo-o desprotegido, nós quatro enfrentamos o grupo de seis. Não somente ele, mas todos nós éramos alvos de zombarias por sermos japoneses. Ora éramos humilhados por não conhecermos bem a língua portuguesa, ora enfrentávamos ofensas por termos olhos pequenos e puxados. Tudo, na verdade, virava motivo para humilhações.
Por trás dos comportamentos cruéis, escondem-se motivações variadas, incluindo, geralmente, etnia, status socioeconômico, condições físicas e orientação sexual, além de crenças religiosas ou quaisquer outras diferenças que naturalmente existem entre as pessoas. O bullying cresce em um terreno minado, cheio de medos e inseguranças, transformando-se em um verdadeiro campo de batalha emocional. As armas vão desde palavras cortantes até agressões físicas. Geralmente, a vítima se sente sozinha e desamparada, cercada por um mar de indiferença representada pelas pessoas que formam o grupo do agressor. Consequências devastadoras fatalmente surgem dessa grande sensação de isolamento.
lll. Limitações em desafio.
Precisávamos, com muita coragem, proteger a nós mesmos, apanhar e aprender a nos defender. Mesmo ridicularizados, precisávamos ser fortes para que aquilo não nos afetasse. Não tínhamos respostas para as roupas que usávamos, cadernos encapados com folhas de embrulho, livros usados, lápis e borracha desgastados. No entanto, éramos bons para aprender e desenvolver soluções. Nossos trabalhos manuais eram escolhidos para exposições da escola. Dominávamos cálculos e resolvíamos questões rapidamente. Dentro dos nossos limites, fazíamos o melhor.
Entre muitas dores, vergonhas e desafios, fomos sobrevivendo àquele mundo hostil e inevitável, pois não tinha como escapar da escola. Com o passar do tempo, fomos nos adaptando e, em um certo dia, não apanhamos mais, pois as aulas de judô finalmente nos serviram como defesa. Como havíamos aprendido com o sensei, usamos a arte marcial apenas para nos defendermos. Desde aquele dia, nosso grupo de japas ganhou um certo respeito. Muitos, depois, queriam ser nossos amigos e até nos ofereciam as frutas que eram distribuídas no recreio.
Hoje, temos mais facilidade de acesso a profissionais de saúde mental, que devem ser procurados e são de grande ajuda nessas delicadas e sofridas situações. Sabemos também que, quando as crianças são estimuladas e recebem apoio para desenvolver seus talentos, frequentemente se auto superam ao conseguir exercer esses talentos. Esse é um dos caminhos pelos quais o bullying pode, paradoxalmente, contribuir para a autossuperação. A pessoa se fortalece e, à medida que adquire mais confiança em si mesma ao explorar seu potencial, atinge uma superação extraordinária.
O tempo passou. Um dos amigos, Takashi, voltou para um sítio com seus pais, e eu, com toda a família, nos mudamos para uma cidade próxima da capital paulista.
Mas as lembranças da opressão sistemática de outros coleguinhas nos marcaram muito.
As consequências do bullying são, com muita frequência, intensas e rigorosas, afetando a vida das vítimas no médio e longo prazo. Os sentimentos devastadores vão desde a insegurança e o medo até a solidão e a tristeza. Em meio às agressões, a autoestima despenca, surgem a irritabilidade e o sentimento de desamparo, a ansiedade e a depressão podem despontar com muita força. Raiva e frustração, distúrbios do sono, transtornos alimentares e fobias são comuns. São tantos e inumeráveis que, em casos extremos, chegam a provocar ideação suicida, automutilação ou, tragicamente, suicídio. Muitas outras vezes, esses sentimentos extrapolam para tiroteios em escolas, resultando em grandes tragédias com múltiplas vítimas e mortes.
Sabemos que, desde sempre, na história do ser humano, o bullying existe. Hoje, apenas lhe foi dado um nome. Com números alarmantes de ocorrências, já se tornou um grande problema de saúde pública. Onde estará a causa de tanto tormento e desequilíbrio para ainda persistir nos dias de hoje, sempre de forma tão real e atual?
Você já foi vítima ou passou por situações de bullying em algum momento de sua vida?
É surpreendente ver quantas pessoas têm uma história para contar sobre isso. Raramente encontramos alguém que não tenha sido afetado por essa experiência.
Como podemos, afinal, cultivar ambientes onde a empatia e o respeito possam sempre prevalecer sobre a tirania? Essa pergunta precisa ecoar em nossos lares, escolas e nas interações cotidianas. A conscientização sobre o bullying pode ser o primeiro passo para mudar essa triste realidade. Sendo uma questão que envolve pessoas, o caminho é longo e certamente repleto de grandes e variados desafios. Porém, pequenas atitudes, como uma palavra de apoio, um gesto de amizade ou solidariedade, um elogio sincero ou até mesmo uma denúncia anônima, podem iniciar um processo de profundo impacto. Assim, muitas vezes se desenvolve a construção de uma rede de apoio, protegendo e acolhendo os mais vulneráveis.
O grande Mestre Jesus um dia disse: “Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles.” Portanto, “faça aos outros o que gostaria que fizessem a você”. Essa é a valiosa Regra de Ouro, uma luz em meio à escuridão, que pode fazer do amor e do respeito os verdadeiros protagonistas de uma nova cultura.
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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.