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Crônica #124 | Viajante das entrelinhas.

  • Foto do escritor: Redação neonews
    Redação neonews
  • há 6 dias
  • 10 min de leitura

Parte 2: A Senhora de Sado-ga-shima.


Capa da Crônica #124 | Viajante das entrelinhas.
neOriginals Crônicas

O que você encontrará nesta crônica:


"Todos nós, ao longo da vida, somos chamados a habitar muitas esperas. Conforme a situação, às vezes uma espera silenciosa; outras, marcada pela aflição ou ansiedade. Há esperas que são refúgios, outras, prisões. Há aquelas que, sem percebermos, nos roubam a vida enquanto aguardamos um sinal no horizonte, que talvez nunca venha. Você consegue manter o equilíbrio nas esperas em que a vida não se submete à nossa ânsia? Talvez o caminho esteja em fazer tudo o que estiver ao alcance e, com aceitação ativa, soltar, entregar e confiar no fluxo invisível das coisas. Seria essa, afinal, a grande prova?"


 


I. A Travessia.


Respirei fundo com o ar fresco que me envolveu antes mesmo de eu ver o céu aberto novamente. Havia saído do túnel, e foi como se a liberdade tivesse chegado primeiro pelos pulmões, antecipando-se à visão que se abria à minha frente: o imenso céu azul. A estrada se estendia à minha frente, mas ali, à beira do caminho, um mirante me convidava a fazer uma pausa. Parei. E contemplei, deslumbrado, toda a beleza natural que meus olhos puderam alcançar.


Lá embaixo, a entrada do túnel parecia minúscula diante da vastidão da planície cultivada. Os campos de arroz se estendiam, ordenados, contrastando com o percurso tortuoso que eu havia superado. Transpusera um desafio muito maior do que um obstáculo natural. Experimentei, no íntimo, a tênue linha entre o medo, que paralisa, e o receio que, quando acolhido com escuta e presença, se transforma em solo fértil para a coragem - a mesma que vi crescer dentro de mim para o enfrentamento.


Estava agora na província de Niigata, na costa oeste do Japão, onde os Alpes deslumbrantes simplesmente abraçavam aquela paisagem única. Pássaros cantavam, e uma brisa fresca insistia em soprar, mesmo no calor intenso daquele verão. Um pequeno espelho d’água, escondido entre as rochas, reunia uma família grande de borboletas coloridas, inquietas e leves. Por instantes, fui absorvido pela beleza que emanava daqueles voos livres – belos, firmes, sem nenhuma hesitação. Eu precisava trabalhar minhas próprias inseguranças e, pensativo, mas livre, me recompus para retomar a estrada.


Agora, na autoestrada, um longo declive me fez sentir a gravidade na existência. Descer é, paradoxalmente, uma forma de se elevar - como se cada pedalada rumo ao fundo fosse, na verdade, um movimento em direção a uma compreensão mais profunda. Era esse o sentimento: um preenchimento silencioso da vida, um encaixe preciso entre o ser e o estar, o alinhamento perfeito entre minha essência e o momento presente, sem nenhum esforço, apenas fluindo como parte de algo maior. Pouco tempo depois, alcançava outra planície, agora ao nível do mar.


Pedalei pela cidade costeira de Niigata, absorvendo a calma das ruas e da paisagem à beira mar. Na manhã seguinte, tomei uma balsa com destino a “Sado-ga-shima”, a ilha de Sado. O mar estava sereno, e um vento suave, vindo do Mar do Japão, parecia trazer consigo uma sensação de paz e serenidade interior. A travessia duraria cerca de três horas. Escolhi um assento na cabine de passageiros e me sentei na frente, com o intuito de observar o trajeto.


Foi então que um senhor, sentado logo atrás de mim, quebrou o silêncio com uma voz alegre e curiosa: “Meu jovem! Nunca te vi por aqui... E veio do Brasil, é isso mesmo?! Seja bem-vindo à ilha! Mas... não me diga que veio de lá de bicicleta?!” Sem esperar minha resposta, soltou uma risada alta, exclamando em japonês: “Bíkurida!!” (Que susto que você me deu!). E, sem cerimônia, deu um forte tapa amistoso nas minhas costas, como se fôssemos velhos conhecidos.


Sua voz carregava o tom de quem já atravessara mares e enxergava além de suas ondas. Nossos olhares se encontraram e se reconheceram numa sutil conexão. O Sr. Takeuchi, com seus 70 anos, transportava mantimentos para a ilha, mas também trazia consigo a leveza de quem acolhe com humor. Sua pergunta sobre a bicicleta me soou como um símbolo de um mundo mais simples, com um ritmo semelhante ao daquela balsa - onde a travessia pelos mares que navegamos importava mais do que, propriamente, a chegada ao destino.


 

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Il. O dilema do passado.


Conheci uma jovem que retornava à sua cidade natal para visitar os pais. Não queria seguir os passos da família na pesca, tradição que atravessava quatro gerações. Para ela, o mar que sustentara sua linhagem parecia mais uma âncora do que um horizonte. Buscava outro caminho, distante das raízes que a originaram. Seus pais lutavam contra as marés para sobreviver; ela sentia que lutava nas ondas árduas da competição no mercado de trabalho.


Seja no mar, no campo ou nos grandes centros urbanos, o confronto entre tradição e mudança segue como um fio invisível que, ao mesmo tempo, une e separa as gerações. Conflitos e dificuldades são gerados. Para muitos, romper com o passado é sinal de progresso; para outros, é um afastamento das raízes que os sustentam. Seria mesmo possível romper completamente com o passado e criar algo verdadeiramente novo? Ou tudo que criamos é, de alguma forma, uma variação do que já existiu? Até que ponto o desejo de independência nos distancia de nossas raízes - ou nos reconecta a elas sob uma nova perspectiva? Se antes as histórias eram transmitidas como legado, nos dias de hoje parecem se perder na pressa do presente.


O tempo avança, mas certos dilemas parecem resistir à passagem das eras. A juventude, seja a de ontem ou a de hoje, ousa desafiar expectativas, sonha com futuros incertos, busca caminhos próprios, onde existir já não basta: é preciso provar valor a cada passo. Fico a imaginar se, hoje, aquela jovem, ao voltar o olhar para trás, reconhece que, mesmo longe do mar, ainda pulsa em si o ritmo das marés - as mudanças que, como ondas, retornam em ciclos - e as tradições que, embora se renovem com o tempo, nunca se apagam por completo.


De qualquer forma, todos seguimos construindo nossa própria história entre a herança do passado e as exigências do presente. E fico a me perguntar até que ponto temos escolha. Você acha que evoluir significa romper com as tradições ou reinterpretá-las à luz do tempo em que vivemos? Diante do nosso mundo moderno, marcado por tanta pressa e urgência, conseguimos estar verdadeiramente conscientes do caminho que trilhamos? Ou apenas respondemos, distraídos e sem perceber, às expectativas desse tempo que nos arrasta?


 


lll. A ilha de sado.


Ao nos aproximarmos da ilha, algo delicado me chamou a atenção. Uma senhora idosa, vestida quase cerimonialmente, com um lenço, acenava calorosamente, dando boas-vindas à embarcação. Muitos dos passageiros no deck responderam com a mesma intensidade. Havia algo profundamente humano naquela cena. Comentei sobre a beleza do gesto daquela senhora. O senhor motorista, porém, afirmou que ela sofria de problemas mentais.

Todos desembarcaram, e percebi que ninguém se aproximou dela. Ela permanecia ali, acenando sozinha, entre a ternura e o esquecimento. Segui o caminhão do Sr. Takeuchi, que me indicaria um hostel. Fui muito bem recebido, com chá e bolachas caseiras. Do refeitório, situado acima da praia, era possível ver algumas senhoras recolhendo algas marinhas. Lembrei-me da jovem da balsa e dos pais que ela descrevera. Imaginei-os ali, entre o frio do inverno e o calor do verão, dedicando-se arduamente às atividades da pesca.

 

Ao som das ondas quebrando na praia e sob o brilho de um lindo luar, passei algumas horas da noite imerso em aprendizado. Ouvi lendas e mitos do rico imaginário cultural da Ilha de Sado, que me conectaram a um tempo em que presente e passado se entrelaçavam, e o real se confundia com o mistério.


Ali, no silêncio da noite, o isolamento dessa Ilha revelava sua verdadeira essência, onde o tempo parecia se arrastar de maneira mais lenta, carregando, em sua paisagem, a presença de um passado místico e de solidão. Sua beleza selvagem atravessava todo esse antigo território de exílio, que, ao longo dos séculos, serviu de refúgio para políticos e intelectuais banidos. Esta terra, que acolheu os afastados pela história e pela sociedade, carregava o peso das esperanças não realizadas e das expectativas quebradas. Lembrava que, assim como o tempo lento da ilha, há experiências que não podem ser apressadas, e há mistérios que exigem paciência para serem compreendidos.


Nesse mesmo ritmo lento e paciente, a ilha se apresentava como uma guardiã silenciosa do passado. Sua presença se insinuava nas paisagens, ora oculta nas sombras, ora sussurrada pelo vento, sem jamais se mostrar por completo. Sua história, imersa em mistérios, segredos e exílios, fez dela uma ilha de espera. Exilados e habitantes olhavam ansiosos para o horizonte, à espera de um retorno - carregando nos olhos a interrogação: o que viria, se é que viria? Uma espera, tal como o tempo que escorre lentamente por suas encostas, impregnou o espírito da ilha, com o silêncio e o tempo se entrelaçando, deixando apenas vestígios do que poderia ter sido. Não seria Sado mais que um local físico, mas também um espelho da condição humana? Marcada pela espera, pela inquietude diante do futuro incerto e pela aceitação do tempo que, por mais lento que seja, nunca cessa de passar?


 


lV. A Senhora de Sado-ga-shima.


Na manhã seguinte, parti de volta para Honshu, a ilha principal, e, ainda de madrugada, dirigi-me diretamente ao porto. Deixei minha bicicleta encostada do lado de fora do saguão e entrei para tomar um chá. Surpreendentemente, encontrei novamente aquela senhora idosa sentada na sala de espera, com o olhar fixo no infinito do oceano. Havia no local não mais que cinco pessoas naquele momento. Retirei meu capacete e, com uma leve curvatura e um sorriso, a cumprimentei. Ao me dirigir ao caixa, ouvi uma voz suave atrás de mim:


- “Você se parece com meu filho... Ele também gostava de andar de bicicleta. Era alegre e brincava com o irmão com uma espada de madeira.” Disse ela, com uma suavidade cheia de lembranças.


- “Onde ele mora hoje?”, perguntei, querendo entender sua história.


- “Ele foi para a guerra. Queria ser aviador, servir ao Imperador. Desde que partiu, venho aqui e fico esperando por ele. Um dia, ele vai voltar em um desses navios...”


Não consegui mais sentir a temperatura do chá. Engoli as palavras que permaneceram secas em minha garganta. Conversamos por cerca de uma hora, até sermos interrompidos pelo anúncio da balsa. Ela se levantou e caminhou até o cais. Acenou com seu lenço suavemente, como uma maestrina que regia a mais sublime das orquestras. Cada movimento seu, repleto de profundo silêncio, carregava o peso de um amor inabalável. Ali, o tempo e o espaço se desfaziam, não tinham nenhum poder sobre sua esperança. Antes que eu partisse, ela se curvou e disse algo em dialeto, que não compreendi. Corri para o deck e, com os braços estendidos, acenei intensamente, como se estivesse me despedindo da minha própria mãe.


Um senhor, ao meu lado, comentou que muitos se afastaram dela devido ao seu comportamento. Ela era considerada louca. Outros, mais compassivos, tentavam entender. No entanto, naquele breve tempo de conversa, fui levado a navegar por águas profundas do pensamento e tocado pela força inabalável de sua esperança. Compreendi que sua loucura, se é que podemos chamar assim, era, na verdade, uma forma sincera de sabedoria. Uma sabedoria que nos convida a não ceder à pressa do tempo e a nos reconectar com o que realmente importa: os sentimentos, as lembranças e as esperanças que insistem em permanecer.


Ela vivia a sua verdade, profundamente enraizada em uma esperança eterna de reencontro. O futuro, então, não era uma promessa distante, mas uma presença viva e concreta, imune à efemeridade da vida. Ela existia como uma ponte entre o passado e o futuro e, em seu presente, carregava a memória do filho ausente, mantendo-se fiel ao amor que a sustentava, preenchida pela expectativa de seu retorno. Os vínculos entre o passado e o futuro, que moldam nossa existência, podem despertar em nós uma consciência mais delicada das esperanças e relações que nos sustentam. Eles tecem um fio invisível que atravessa o tempo e sustenta o presente. Assim, os laços que nos unem a quem amamos não são rompidos pela ausência, mas constituem elementos de uma continuidade eterna, que se estende por entre as dobras do tempo, conectando-nos de forma imaterial e profunda.


Hoje, meu pensamento se estendeu para além da solidão e da espera que ela representava para as pessoas. Ela era um testemunho de resistência, mostrando que algumas esperas não são apenas a passagem do tempo, mas estados da alma. A senhora de Sado, tal como a própria ilha, parecia habitar essa espera. Talvez não por resignação, mas por uma entrega ao fluxo invisível das coisas. Em sua quietude, ela se integrava a um ciclo maior, semelhante ao mar que a separava e, paradoxalmente, a unia. Seu desejo se manifestava na forma de uma espera eterna por um encontro: um anseio que carregava um peso imenso, mas também uma serenidade única. Quantas vezes, em nossas próprias vidas, somos chamados a habitar essa mesma espera silenciosa? E o mar, que separa e liga, não espelha também os nossos anseios mais íntimos?


O que nos impede de viver com a mesma serenidade diante do desconhecido, sabendo que a espera, por si só, é parte do caminho? Assim como Sado, ela não se apressava. Ela existia, apenas existia, na pura expectativa, imersa em sua verdade profunda, permitindo que o tempo e o silêncio fossem os únicos a traçar seu destino. Ali, no porto, era como se o tempo não passasse, mas se entrelaçasse, de forma quase sagrada, com a eternidade. A presença daquela senhora, embora solitária, integrava-se à teia invisível de significados, marcada por uma complexa simplicidade e pelo mistério do desconhecido. Tudo, ao redor, parecia dissolver-se nas histórias e lendas da ilha, como se ela mesma fosse uma personagem viva de um tempo que não terminou. Ela era a própria ilha: cercada de mar e memória, firme em sua espera, serena em sua solidão. Em seu silêncio, carregava o peso delicado de uma humanidade atemporal. E ali, onde o tempo hesita, ela permanecia: ponte entre mundos, guardiã de um reencontro que se revelava na presença feita de ausência.


De volta ao meu mundo da bicicleta, segui rumo ao Norte, tentando retomar o ritmo que a jornada exigia. Era como se, ao cumprir a meta, eu pudesse escapar da imersão provocada pela Senhora de Sado-ga-shima. De repente, uma motociclista me alcançou e, com seu olhar forte e seus gritos cheios de energia, me arrancou do pensamento profundo:


- “Gambatê!!! Gambatê!!!” – a típica expressão japonesa para encorajar alguém, algo como “Dê o seu melhor!” ou “Força aí!”. E, junto com a velocidade da moto, dissiparam-se no ar os gritos carregados de determinação.


A vida exige de nós mais do que o simples movimento, mais do que uma entrega ao que nos é imposto. Será a busca um peso ou uma libertação?


Continua na parte 3: O grito da jovem motociclista.



 


 

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