Desafiando a paciência.
I. O conflito.
Era intervalo de almoço numa obra. Em pé à sombra de uma árvore, um dos engenheiros com seu celular grudado em uma das orelhas, gesticulava intensamente seus braços e mãos, como que gritando desesperadamente. Me aproximei preocupado.
Rosto vermelho, com o sangue e nervos à flor da pele, corta a ligação telefônica e se senta pesadamente num dos bancos de madeira que ali tinha. Percebendo minha presença, pede desculpas pela cena e comenta estar com problemas de relacionamento. Semblante exausto e meio envergonhado, desabafa dizendo não suportar mais viver com sua mulher.
Essa é uma situação que se apresenta com uma grande variação de grau, mas é tão constante e comum nos dias de hoje, que podemos afirmar que o conflito está inserido nas convivências, e em praticamente todos os lugares. Seja entre casais, nas famílias, nos ambientes de trabalho ou lazer, até nos lugares que presumíamos não ter cabimento, nas casas religiosas. Enfim, onde está o ser humano, lá está a dita cuja da convivência cheia de hostilidades. A convivência é importante em todos os meios e para cada um de nós, indistintamente. Se estivermos despertos e os encararmos de forma consciente, tanto os conflitos quanto as convivências serão extremamente positivas, pois são ferramentas fortes para proporcionarem o nosso crescimento como seres humanos.
Convivência pacífica, seria isso possível? Onde encontrar elementos para tal?
Conflito, diálogo e convivência, são temas que fogem da nossa compreensão mais aprofundada; e em qual ordem essas palavras se apresentam, já nos confundem.
Em meio à turbulenta rotina que nos impõe o tempo atual, nota-se que faltam peças para serem encaixadas numa convivência saudável. Entre essas, o diálogo, engavetado e sendo substituído por teclados. O elemento diálogo, tão essencial e importante não é mais tão exercitado; o seu princípio deveria se iniciar no interno e não no externo. Realidade massacrante e presente nas nossas vidas.
Vejamos como anda o princípio do entendimento entre os seres humanos: a convivência.
O homem que desligou nervosamente o seu celular, dando lugar a um violento acesso de raiva e impaciência, é uma cena de aspecto bastante comum, no meio do trânsito caótico das grandes cidades. A diversidade de exemplos é muito grande, e nos passa a impressão de que as pessoas hoje, estão vivendo no limite da paciência, não conseguindo suportar e dando vazão às explosões de iras envolvidas na impaciência e na intolerância. São tempos de grandes tempestades. Impaciência com intolerância, dois quesitos de peso que interferem negativamente nas convivências, gerando as dores que estão agregadas a qualquer tipo de conflito.
Ao perdermos a paciência perdemos junto a capacidade de aceitação, e incorporada pela intolerância nos faz sermos hostis com pessoas, fatos, frustrações, ou qualquer situação que se mostre contrária à desejada naquele dado momento. Doenças, preocupações, estresse, medos, muitas situações que se fazem presentes na vida de qualquer pessoa, levam aos extremos a sua paciência. Impaciência, impulsividade, comprometimento maior da doença, da frustração e da convivência. A condição de convívio familiar ou social com o outro, é dissolvida num comportamento de sobrevivência, onde reina o desequilíbrio emocional com todos os seus afins conflitos.
Uma visão consciente do que significa a vida, nos possibilita um exercício de autodomínio das emoções. No entanto, somos tão complexos interiormente; nos conhecemos tão pouco, que uma simples análise toma dimensões, muitas vezes, incompreensíveis a nós mesmos. Das emoções mais grosseiras, partindo das instintivas e caminhando pelo egoísmo, ciúmes, inveja, podemos chegar até àqueles sentimentos mais nobres, onde a ética, os valores dos princípios humanos são exaltados. Esta vasta e complexa série de emoções e sentimentos que possuímos, está à nossa disposição para serem entendidos. Nós temos o poder de construir sentimentos, escolhendo os que devem ou não imperar em nossos dias, através da nossa força de vontade, do nosso esforço e determinação.
Por não ser a nossa vida algo pronto, durante a sua constante e interminável construção, necessário se faz os devidos ajustes. Uma caixinha aberta para a entrada de novas ideias é sempre bem-vinda.
Aprendemos a pensar de maneira correta quando temos, de forma clara um conceito, antevendo seus reflexos e suas consequências nas nossas vidas. Assim sendo, saindo da postura passiva de aceitar simplesmente qualquer ideia, sem ao menos analisar ou refletir o quanto de valor ou não ela carrega. Muitos colapsos podem ser evitados diante dessa postura, que facilmente nos mostra que a raiz do conflito, está dentro da própria pessoa.
Qual é a sua capacidade de lidar com conflitos? Porque afinal, conflitos é o que mais se tem, abundância em todos os aspectos e em todos os lugares. Seja a nível de mundo, de país, das pessoas que convivem conosco, do trabalho e principalmente da família. Os de família talvez sejam os de maior dor, e onde encontramos os de maior resistência, pela existência dos sentimentos envolvidos e emaranhados.
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II. Conviver para aprender.
Estaria na família, como muitos afirmam, os nossos maiores desafios de convivência?
O homem após não aceitar as várias chamadas de telefone da sua esposa, suspira várias vezes olhando para o seu celular. Esposa de seu segundo casamento trouxera consigo um filho, que agora estava na fase da adolescência. Seu enteado, garoto problemático bastante revoltado e intolerante com a vida em geral, estava com sérios problemas de comportamento no colégio. Questões complexas que naquele momento estava à beira de uma expulsão da escola, exigindo dos pais providências urgentes. Confuso, perdido, sem rumo, e sem nenhuma perspectiva de conseguir resolver o problema, havia entrado em um profundo conflito com sua esposa. Dizia estar se sentindo um vulcão, expelindo uma explosão de sentimentos ruins e ardentes, com suas chamas a consumir qualquer ideia que surgisse.
O nosso diálogo conosco mesmo seria de grande valia, antecedendo a compreensão dos conflitos que se apresentam ao nosso redor. Se já tivermos formatado e resolvido em nosso interior, a compreensão de uma gama das nossas emoções e sentimentos, conhecendo as condições internas que interagem nas várias facetas de um construir de convivência; poderíamos então, nos colocar como ferramenta de alguma transformação.
Soluções externas podem nos ajudar, mas seria do nosso movimento interno, da nossa busca pela compreensão de uma verdade, através de um autoconhecimento, que surgiriam as possibilidades de uma dedicação, onde o nosso melhor poderia ser oferecido minimizando os conflitos.
Seres humanos sem muitos conflitos resultaria num mundo com menos conflitos, óbvio, mas de muita complexidade para a nossa realidade, ainda. Porém, à medida que formos tomando consciência, enxergando com mais clareza o ponto do conflito, entraremos no domínio e conhecimento, expandindo de dentro para fora, saindo de si para alcançar aos poucos os outros.
Entender e compreender a si e ao próximo é tarefa muito complexa, mas se conquistada nos preenche de maior poder interno, elevando além de tudo, a nossa bondade.
A percepção que temos dos outros, às vezes, é por nós distorcida. Na verdade, e geralmente, tentamos moldar as pessoas ao nosso modo de querer. É impressionante essa ilusão que a pessoa tem, de que vai mudar o outro à sua maneira. Não se muda o outro, é mais inteligente sermos nós o fator de mudança.
A não aceitação do outro nos leva à intolerância, gerando os problemas na convivência. Nesse ponto, já com a tolerância comprometida, as diferenças se mostram cada vez mais monstruosas, os conflitos se mesclam em todas as entranhas, e então está instalada a quebra do relacionamento.
Foi exatamente esse o termo que o homem desesperado usou, disse que havia quebrado o casamento. Que os cacos eram tantos que não tinha mais conserto. Disse ele: - “apesar de me repelir e não me aceitar como pai, eu sempre o tratei como se fosse meu filho, mas os problemas que ele causa são tantos que é difícil entender o que realmente deseja. Por causa dele nossa família está se desagregando. Não era tão ruim no começo, mas agora virou um verdadeiro inferno. Nem tenho mais vontade de voltar para casa”. As constantes brigas e discussões entre os três, estavam provocando um verdadeiro colapso nervoso familiar.
A vida de cada um leva às buscas, diferentes e individuais, necessárias para aquele devido momento. Portanto, o que é bom para um, não necessariamente será bom para o outro. Tudo vai depender do momento particular de vida que está vivenciando aquela pessoa. Há que nos sensibilizarmos e percebermos isso, respeitando as escolhas feitas pelos outros. O momento certo para tudo acontecer chegará com certeza, dentro da programação registrada para cada um. Então, sem imposições, sem desespero, é necessário que entendamos o relógio dentro do fluxo da vida. Sejamos pacientes e tolerantes, fortalecendo e não fragilizando as convivências, nos seus mais variados ambientes.
III. A chaga da intolerância.
Quando temos de fato o respeito, a compreensão e a aceitação do outro, do jeito que exatamente é, a intolerância não nos acomete. Tolerância então nos torna capazes de olharmos para o outro, compreendendo e aceitando-o incondicionalmente. Portanto, tolerar não é suportar, é algo mais profundo, que exige também, uma maturidade mais profunda para ser exercida na sua totalidade.
A intolerância nem sempre é algo consciente. Muitas vezes somos intolerantes sem nem mesmo percebermos, vindo à tona por preconceitos antigos e cristalizados. Isso não nos isenta de responsabilidades, e exige muito da nossa atenção.
A intolerância que existe entre duas pessoas, se potencializa quando a colocamos num âmbito maior, envolvendo religião, política, nacionalidade, sexualidade, estilo de vida etc. Percebemos posturas radicais, nos extremos, com hostilidades e agressões, se expressando na violência e no ódio. Muitas vezes culminando em crimes hediondos, irreparáveis e fatais.
Até onde vai o limite da tolerância? Ser tolerante significa ser conivente?
Nesses casos extremos, estaríamos então sendo coniventes com a crueldade, a perversidade, ou aclamando um crime?
O relacionamento humano é tão complexo, que muitos evitam entendê-lo, simplesmente fogem para não enfrentar. O desgaste é cruel. Ficou mais fácil o homem chegar à Marte, que elaborar uma equação para a convivência. Mesmo com os ensinamentos dos grandes mestres, sábios e mentores, continuamos numa intensa batalha para chegarmos a uma convivência, na sua expressão de excelência.
A intolerância é como um vírus, que junto com a maldade vai contaminando as pessoas pelos seus desdobramentos, como numa progressão geométrica. A sua raiz está dentro da pessoa, e somente ela poderá reconhecer e decidir extirpá-la, buscando entender suas carências, e o seu sofrimento mais íntimo.
A tolerância é necessária para uma boa convivência.
A intolerância nasce do não aceitar o que é diferente aos olhos da pessoa, porém, para os nossos relacionamentos, não há riqueza maior que esses encontros com o diferente.
As diferenças são absolutamente necessárias, e tornam mais belo o nosso mundo, assim como elas são os elementos que enriquecem de maneira absoluta, a vida de cada um de nós.
Convivência mais que fragilizada, o homem se contrapondo e se debatendo ante as diferenças existentes entre ele, seu filho e sua esposa. Cada um preso em suas particularidades, e o homem diz não conseguir entender o porquê de suas diferenças terem se agigantado tanto. - “Todo santo dia é a mesma coisa, cansei de lidar com meu filho, não existe conversa, não aceita o que eu falo, me condena como pai, e além de tudo me humilha na frente da minha esposa. Isso está me matando, não sou mais quem eu era”. Mal conseguiu ter um descanso, e com a mente ainda fervendo voltou ao seu trabalho.
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IV. Construindo sentimentos.
Fiquei a pensar nos quantos casais estão também passando por crises, que atingem todos, independentemente da classe social, cultural ou econômica. E quantos deles estão sendo capazes de fazer uma leitura correta dos seus conflitos, saindo talvez mais fortalecidos e unidos, ou então, simplesmente se separando por não se tolerarem mais.
Difícil esperar que surja uma tecnologia milagrosa, uma nação ou uma religião que possa definir a ordem de uma convivência.
Acreditemos sim, no Homem.
No homem com capacidade de saber pensar, de saber refletir, de saber dialogar.
Esse homem que ao entender e sair da postura de racionalizar, se abre ao sentir.
Os sentimentos que são tão importantes quanto a nossa razão. Os sentimentos que nos proporcionam o sentir os valores das coisas, que nos integra à vida, que nos integra a nós mesmos. Que nos faz sair da mecanicidade condicionada, preenchendo o nosso interior.
Não há como conviver bem sem desenvolver nossos sentimentos.
O nosso poder de construir sentimentos, de fazer da convivência um processo consciente, nos possibilita gerar autoconhecimento através dos conflitos.
Para construirmos uma convivência harmoniosa, não há outro meio, a não ser conviver.
Nossa realidade hoje está pobre de convivência, muitas vezes as pessoas estão lado a lado, moram juntas, mas não convivem. É uma triste realidade cada vez mais presente, começando pelas nossas crianças que não mais brincam, não mais convivem; elas lutam entre si através de jogos virtuais nas telas de seus computadores.
Por várias vezes ainda, encontrei o homem na sombra da árvore, e muito conversamos nesses encontros. Aquele que tanto brigava no seu celular, desta vez estava com um semblante melhor, sorriso no rosto. Havia enfim conseguido encontrar um ponto de equilíbrio, talvez tenha descoberto o ponto do conflito. Refletiu muito durante esse período, entendendo a diferença de ser bonzinho e ser bondoso.
Ele, na ânsia de ser aceito pelo enteado sempre fora bonzinho, não medindo muito as consequências dessa postura. Bonzinho é incoerente porque age sem critérios. Ele havia se tornado um protecionista incoerente. Não havia coerência, apenas tolerava; e uma tolerância indiscriminada favorece a desordem.
O nosso Criador e o nosso maior Mestre Cristão são bondosos porque são coerentes.
A Lei Divina é perfeita, é imutável, porque é coerente.
V. Tolerância divina.
O amigo engenheiro, estava no processo de reconhecer e compreender seu filho, se estendendo à sua esposa. Esse ato em si, já havia promovido uma melhora muito grande em sua família. Ainda havia discórdias, mas o diálogo sincero o colocava como o responsável por aquele lar.
Todos nós necessitamos do perdão e compreensão pelos nossos erros e desacertos, porém é fundamental que se corrija o ato. Principalmente se formos responsáveis por aquela pessoa, como no caso do pai do filho enteado. Tolerância não é ser conivente com os atos errados, porém não é também condenar a pessoa que errou. Devemos sim, sempre que possível, ajudar e ajudar. No entanto, por mais que amemos alguém, existirá sempre um limite para essa ajuda. Haveremos de compreender isso, pois o livre arbítrio da pessoa lhe dá o direito de suas livres escolhas.
Somente o nosso Criador pode nos ajudar eternamente, Aquele que é soberanamente justo e bom. Ele que não quer a nossa morte pela condenação, e sim o nosso avanço, o nosso crescimento e fortalecimento.
A justiça divina, a quem todos nós, sem exceção, iremos responder, é diferente da justiça do homem. A justiça divina é ambientada na educação e no amor, e sem privilégios a quem quer que seja.
A tolerância divina é paciente e suporta o tempo exigido para cada um de nós.
Então, nesse árduo caminho a que estamos adentrados, nesses tempos de tantas tempestades e indefinições, estamos todos usufruindo em algum grau da tolerância divina. Estejamos conscientes, que em algum momento, haveremos de encarar a prestação de contas dos nossos atos.
Sabendo de antemão que existem as leis morais e divinas, e que inevitavelmente iremos todos responder por nossos atos perante essas leis, despertemos para o máximo respeito com o próximo, o respeito para com as diferenças, promovendo sempre o bem ao nosso redor.
Disciplina, consciência, determinação e coexistência. Disciplina, muita disciplina.
Quais os elementos que você escolheria, para uma harmoniosa convivência?
Confira a última crônica da nossa coleção - Crônica #76 | Reflexo do silêncio.
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Que tal baixar e compartilhar trechos dessa crônica com a galera?
Você já conferiu o último vídeo do neoPod lá no YouTube do Portal?
Nosso cronista Otavio Yagima fez uma participação especial, e o encontro está imperdível; confira no player aqui embaixo e também visite as demais postagens no YT da neo!
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