Nos picos dos altos e baixos.
I. Tempestade.
Chuvas torrenciais em meio a um trânsito intenso, num final de tarde de uma sexta-feira.
Um enorme congestionamento de veículos se formou e eu lá estava, na marginal Pinheiros, uma movimentada via da cidade de São Paulo. Por conta do aumento, tanto da intensidade da chuva quanto da quantidade de veículos, acabei por ficar obrigatoriamente parado sobre um viaduto. Nada se podia fazer senão desligar o motor. Me acomodei e liguei o rádio, um clássico de Tchaikovsky se espalhou por todos os cantos do carro. Rebaixei o encosto do banco com a intenção de aproveitar e relaxar um pouco.
Fiquei a contemplar aquele momento, que com toda sua energia, a natureza estava manifestando.
Clarões dos raios iluminavam como fogos de artifícios, e o som dos trovões ecoavam como tambores tribais prontos para uma guerra. O rio que passava logo abaixo mudou de cor, passando para um tom mais avermelhado, se misturando com a terra.
Parado e sem a possibilidade de seguir caminho, parece que os movimentos externos começaram a se destacar. Uma ampliação dos sensores da sensibilidade aflorada, e então, a percepção da vida se torna mais nítida, a vida está acontecendo independente de qualquer vontade. É uma situação mais que natural, porém a linguagem da nossa mente parece adquirir uma leitura diferente, se refletindo num raio mais dilatado.
Alguém dirige o trem metropolitano que passa por debaixo da ponte, e dentro dele gente como a gente, que segue o caminho da vida, ora a trabalho, ora a estudo, ora para visitar alguém. Um motociclista arrisca sua passagem numa grande poça, levando na sua garupa uma outra pessoa. Trabalhadores com capacetes amarelos aglomerados num canto, protegendo-se da pequena queda de granizos. O que será que eles estão conversando dinamicamente? Uma ambulância “grita” desesperadamente, pedindo passagem pelo acostamento. O que será que ocorreu com a pessoa que está sendo socorrida? Helicópteros que comumente estavam em movimento, repousam agora em seus hangares, aviões que sequencialmente passavam, não nos faziam ouvir o som das suas turbinas. Vendedores ambulantes que em dias normais aparecem como abelhas, ali não estavam naquele exato momento.
Comecei a rabiscar alguns desenhos no vidro, já embaçado, da janela. De repente, avistei uma imponente roda gigante, antes despercebida. A minha mente, agora mais inquieta, começou a fazê-la girar.
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II. O passageiro.
Com seu exclusivo sistema de funcionamento, nos faz entrar eufóricos ansiando pela subida, pelo desejo de se chegar ao topo. Uma vez dentro da cabine, sujeitamo-nos a obedecer ao seu sistema único e fechado. Assim como eu naquele momento, preso dentro do carro, me transpus à cabine igualmente fechada da roda gigante. Automaticamente me coloquei como um passageiro, embarcando numa das suas cabines.
Entramos por uma porta para a cabine da vida, e atrás de nós ela se fecha. Num movimento contínuo e compassado, ela inicia seu movimento seguindo uma rotação, e seu objetivo maior é nos levar para cima, ao topo, ao ápice.
No início tudo é novidade, tudo é belo e emocionante. As pessoas que ficam nas plataformas para embarcar, parecem ficar pequenas, desaparecem os detalhes de cada personagem. O universo do horizonte até então não observado, aponta de forma deslumbrante. As montanhas antes escondidas por detrás da selva de pedra, despontam lá longe. As emoções de alegria, começam a se misturar com as da insegurança e do medo, conforme a roda gigante vai subindo. Lá de cima, uma visão da montanha russa. Talvez as nossas vidas estejam mais para os movimentos da montanha russa, que da roda gigante. Só de pensar já causa um certo desnorteio. Quantas e quantas vezes pegamo-nos desnorteados, à procura desesperada de um norte certeiro?
III. Transitória constância.
Apesar de todos nós sabermos que a vida não é uma constante, fomos condicionados e ensinados a tentar a todo custo, permanecer numa constante. Numa constante felicidade, ou numa busca permanente dela. A tristeza nos aflige, então a evitamos, fugimos dela em busca do seu oposto.
Porém, assim como a roda gigante que nos traz paisagens diferentes a cada movimento, a montanha russa atropela com sua brutalidade, trazendo percepções distorcidas pelos seus bruscos movimentos. De qualquer forma, as mudanças estão sempre presentes, em ambas as situações. A única coisa que não para na vida são as mudanças, o estático é contra a natureza, é incompatível até com nossos átomos, em constantes e contínuos movimentos. Tudo é cíclico, não existe o eterno nessa nossa dimensão. No entanto, aprendemos que precisamos conquistar estabilidade, e essa cobrança é em todas as áreas de nossas vidas.
Infinitas possibilidades e variantes, orbitando em todo o universo, infiltram-se em todas as fases de nossas vidas. Desde o nascimento até a nossa morte física, acompanhando todos os momentos e movimentos dos nossos dias. Movimentos de lateralidade, variações que vão e voltam, e se suavizando à medida em que formos entendendo e incorporando, com naturalidade e aceitação, os elementos pontualmente trazidos.
Depois de nos oferecer um estado de contemplação, pelas belezas que se abrem diante da posição nas alturas, a roda gigante continua compassadamente sua rotação. Mais passageiros se adentram, e após uma ilusória ligeira pausa, o movimento prossegue. Com isso, a referência do horizonte, passa a ser agora o chão que se aproxima. Aquele mundo gigantesco, passa a ser uma pequena esfera em torno de si.
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IV. Conflitos.
Por mais deslumbrantes que sejam as paisagens vistas lá do alto, como que sob o efeito da lei da gravidade, automaticamente, somos puxados a encarar as paisagens mais concretas, complexas e mais próximas a nós, as do chão. Numa mescla de alívio por terra firme, e por outro lado uma depressão angustiante pela descida, pelo desaparecimento do infinito horizonte, voltamos à rotina da vida.
Passamos um longo tempo por fases destemperadas, com perguntas sobre nós mesmos, e na maioria da vezes, com respostas incompletas.
Dentro da cabine parece que o mundo nos foge, uma realidade à parte acontece lá fora. Seria realidade ou ilusão? Onde estaria uma ou outra? As nossas percepções, através dos cinco sentidos, definiriam a verdadeira Realidade ou será que a Realidade os transcende?
Sentir!
Eu sou ou estou?
Fui amado, desejado.
Sou rico.
Nada me falta, tenho conforto material. Mas, muitos vácuos ficam entre ser amado e amar, desejar e ser desejado. Na ânsia de não se perder nada, das inseguranças e dos muitos medos, ou até por comodismo, se negam a sair dessa roda de conquistas. Os pensamentos invadem sem controle, e os vícios sobressaem de forma avassaladora.
Nessa correria louca a que se posicionou o homem, há pensamentos demais, há desejos e buscas demais. O querer, acima do apenas ser, ainda impera neste reino.
É tão óbvio, mas vale lembrar que tudo do que temos e conquistamos aqui, apenas a parte que não enxergamos permanecerá conosco.
Para não descer e querendo se manter nas alturas, agarram-se nas barras laterais, e sujeitam-se a pagar para dar outra volta. Essa nova volta, na mesma rotação compassada, vai trazer porém, sem dúvida nenhuma, novos olhares, novos ângulos de visões antes não percebidos. Tudo mudou ou foi apenas uma mudança de visão própria? Novas percepções afloram, novas situações surgem diante dos mesmos cenários.
V. Alquimia da gratidão x escolhas x realidade.
Observação e foco, assim surgem as escolhas a que optamos.
A Vida não pede licença para colocar suas circunstâncias, ela apenas coloca. A leitura, a atitude que se tomar diante dessas circunstâncias é que vai determinar a nossa vida. Nós mesmos escolhemos nossas tristezas e nossas alegrias, estavam lá já escolhidas, bem antes de experimentá-las.
Portanto, a Vida não é vingativa, ela apenas nos devolve o que a ela oferecemos, na mesma proporção, nas mesmas medidas. Temos uma tendência a procurarmos soluções, apenas nos momentos de crises, então, é propício que mergulhados nelas, surjam o reconhecimento e a aquisição de novos valores. Elemento perspicaz no despertar de muitas vidas.
Sinto os veículos do lado ligarem os motores, os carros começam a se movimentar. A pressa e a volta à agitação das pessoas naquele longo congestionamento, dão sinais através do som de algumas buzinas.
É o alarme, chamando de volta ao nosso mundo concreto.
A situação externa que se mostrou incontrolável e fora de alcance para se resolver, no seu exato tempo se deixou dissolver. Voltou à normalidade, sem grandes problemas, para aqueles que assim a entenderam e respeitaram. Aos que tentaram romper as barreiras por entre os carros, ficaram igualmente presos alguns metros mais pela frente, inquietos e blasfemando, frustrados e impotentes perante a força das circunstâncias. Porque naquele espaço de tempo, tivemos que estar exatamente ali, daquela forma? O que nos fez ficar obrigatoriamente parados? Será que alguns conseguiram enxergar o que estava além dessa pequena parada?
Por vezes, em frações de segundos nossas vidas dão uma volta completa de 360 graus, uma volta completa da roda gigante. E então a vida se torna estranha, se torna algo antes não imaginado, e nos questionamos onde está a justiça, o merecimento, como se nada tivéssemos a ver com aquela situação. Para aqueles que acreditam que nada acontece para o seu próprio prejuízo, portas se abrirão indicando novos caminhos; e então novos horizontes despontarão, com suas novas e diferentes paisagens.
A tempestade daquele momento interagiu com a vida de todos ali.
Os nossos fatores internos são influenciados sim pelos fatores externos, sem sombra de dúvidas. Um enfrentamento satisfatório precisa contar com uma estrutura interna fortalecida. Se a nossa fortaleza interna for tímida e estiver adormecida, poderá ser despertada com a nossa vontade e força motriz, se erguendo e mostrando suas faces. Quebrando a crença de que somos incapazes, enfrentando e suportando os sentimentos, antes evitados, por medo ou insegurança. Talvez até chegando a um ponto de entender o porquê do camuflar, caminhando à compreensão, sentindo com mais clareza o que está além daquelas dores.
A fuga das tempestades dá lugar a uma parada estratégica, onde se aprende a apreciar e a se defender de seus raios e trovões. A fuga e o medo já não têm mais lugar de destaque. Assim como a bonança e as tempestades, todas as situações são transitórias. Perante a imensidão de tempos, essa vida é um breve momento diante da nossa eternidade, e esse momento passa, tão rápido quanto o tempo de os raios mostrarem seus enérgicos, e expressivos clarões.
O tempo lá fora começa a dar uma ligeira clareada. Apesar de me encontrar sentado dentro do carro, uma parte de mim ainda estava lá em cima, na roda gigante. O coração apreciando, e a mente tagarelando apegada com as belezas daquele agradável momento, numa deliciosa zona de conforto.
Um som estridente de buzina me puxa imediatamente para baixo. Me recompondo para enfrentar aquele momento que se mostrava urgente, desengato o freio de mão. Percebo que não podia dar marcha ré, porque atrás de mim muitos estavam aguardando passagem. Restando então seguir em frente, devagar, e de olho nos retrovisores, que refletiam os instantes vividos nesse passado recente. Olhando para o lado, e me despedindo da roda gigante que me levou às alturas, proporcionando o sentir subir e o sentir descer. Apontando que o percurso entre ambos requer sabedoria, requer motivação e propósito claro; uma dinâmica consciente, onde os sentimentos e suas escolhas são os pilares, para que essa trajetória encontre no seu ponto alto ou no seu ponto baixo, os ecos desejados. Dentro de um equilíbrio, adquirindo experiência para reconhecer e tratar as aflições dos conflitos, assim como sabedoria para reconhecer e viver plenamente sua felicidade.
Transitoriedade, o constante movimento que nos impõe a impermanência, e que nos leva a refletir numa permanência, a da alma. Nós não somos, nós estamos por esse breve momento vestindo essa nossa roupagem, dentro dessa imensa roda gigante chamada vida, que nos leva rotativamente ao alto e ao baixo, ciclicamente.
Se pudéssemos viver na alegria de simplesmente ser. Se pudéssemos encher o nosso coração de gratidão, avançando perseverante em busca do real propósito de nossa alma, a nossa vida seria de amor. Essa gratidão, que com sua química encerra o segredo da alquimia, banharia com nobreza a suprema sabedoria de todos os nossos sentimentos.
Talvez assim se suavizaria os altos e baixos, dando lugar a uma linha constante de equilíbrio e de paz.
Confira a última crônica da nossa coleção - Crônica #77 | Intolerante convivência.
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