O que você quer ser quando crescer?
I. Na pureza e inocência.
Sempre que almoçamos no nosso clube, costumamos após a refeição, sentarmo-nos sob as sombras de enormes árvores, desfrutando um bom tempinho de descanso em meio à natureza. Uma dessas árvores é um grande pé de jatobá, que na sua devida época, espalham seus exóticos frutos pelo chão. E sob a sombra dessa enorme árvore, há um parquinho com aqueles clássicos brinquedos para crianças. A presença das crianças contagia e movimenta o ar com sua pureza e alegria.
Distraídos com nossos cafezinhos, somos interrompidos por duas garotinhas que chegam e sentam-se ao nosso lado.
- “Oi meninas!! Está gostoso o sorvete?”
- “Sim. O meu é de chocolate!” Assim responde a criança com menos idade.
- “O meu é de limão!” Logo retruca a outra criança.
- “Vocês são irmãs?”
- “Não! A gente é amiga do mesmo prédio. O meu pai vai chegar logo, ele está curando uma pessoa. A minha mãe que está aqui, lá dentro, para almoçar” assim responde a maior.
- “Seu pai é médico?”
- “É, o pai dela é médico e a minha mãe também, mas ela não está aqui com a gente hoje” responde a outra garotinha menor.
Duas garotinhas adoráveis e comunicativas vivendo suas fases, dentro da inocência infantil que as tornam meigamente graciosas. Saboreando devagar e com prazer os sorvetes, e uma conversa descontraída flui entre as duas crianças.
“Você vai ser que nem sua mãe?” Pergunta a maior.
“Nãooo!! Quero ser uma mágica!” Responde a menor com os olhos arregalados.
“Mágica?!!” A maior ri em tom alto e deixa respingar o sorvete na roupa.
“É!! Quero tomar sorvete sempre, e fazer ele aparecer quando eu quiser. Não precisa de dinheiro e nem pedir para minha mãe comprar, e posso dar para quem eu quiser”.
Que belo!!
Ouvir e sentir a vibração da bondade e do carinho de uma criança, isenta ainda de egoísmo.
A generosidade brilha em seus olhinhos, estampando seu semblante com muita docilidade.
Seria esse um dos verdadeiros estados de felicidade?
Quem dera tudo que imaginarmos de bom poder acontecer num passe de mágica, como deseja a garotinha que adora sorvete. O que na verdade acontece, estamos sempre criando nossa própria realidade.
O perigo é que a maioria dos pensamentos que circulam nas mentes, não são tão bons e puros como de uma criança. Se cocriássemos de imediato tudo o que vem na nossa mente, este mundo seria uma desordem. De qualquer forma criamos sempre, nós mesmos, a felicidade ou os percalços dos nossos caminhos. Há que um dia entendermos, aceitarmos e trabalharmos esse aspecto, tão pouco ainda compreendido. Imaturos como ainda somos, negamo-nos a assumir a vida, culpando o externo e a tudo que a ele pertence. É mais fácil, conveniente e cômodo. E a vida passa quase que despercebida.
Na pureza e inocência de uma criança a noção do desconhecido é remota, a vida é apenas o que se reflete no presente, e tudo parece ser muito simples.
- “Você quer ser mágica só pra tomar sorvete? Tem tanta coisa gostosa que eu não ia saber escolher!”
A garotinha pende sua cabecinha de lado dando um sorriso maroto, e mostra contemplando seu sorvete, que saboreia com tanto gosto.
- “Mas eu gosto mesmo é de sorvete!!” Assim complementa.
- “E você vai ser o que quando crescer?”
- “Eu quero ser bailarina!! Igual minha irmã que sempre tem aula.” E se levanta demonstrando alguns passos do balé. A menorzinha se levanta e a acompanha, rindo e imitando a maior.
A vida deveria sempre continuar assim, com essa disposição e alegria. Entretanto, com o passar dos anos, muitos poucos conseguem permanecer com essa criança feliz e descontraída, interiormente.
II. O adulto.
Os planos de vida vão assumindo outros formatos, vão mudando várias vezes, muitos desejos vão se realizando e outros virando apenas sonhos; e outros muitos que eram sonhos vão se perdendo. E então, a vida vai se mostrando tal qual como realmente é, hostil, rude e cheia de asperezas.
As pressões vindas de todos os lados, introjetando ideais e visões do que seria sucesso e felicidade. E quando percebemos já estamos imersos, assumindo como verdades os valores dessa poderosa e influente mente coletiva.
E aquela pergunta que sempre faziam para nós quando éramos criança, vai tomando corpo. A resposta que era dada em tom de alegria, ocupa agora de forma maçante, quase todo espaço de todo o nosso organismo. E então, pode vir a saudade daqueles inocentes momentos infantis, cujos sonhos eram tão coloridos.
Onde estaria perdida aquela criança feliz e descontraída? E em meio à essa procura, podemos nos encontrar com as ilusões que nos confundiram, mostrando inclusive o que deixamos de ser porque crescemos.
Crescemos com as expectativas se moldando aos ideais impostos, até que se chega no ponto de estar vivendo na perspectiva do que dita as outras pessoas. Essa postura é praticamente assumida por toda a adolescência, avançando ainda por muito tempo na idade adulta, às vezes perdurando por toda uma vida.
Raramente somos conscientemente preparados para sermos nós mesmos. Temos, por imaturidade, o hábito de invadir e desrespeitar os limites de nossos semelhantes, impedindo que tenham um caminhar livre. A complexa tarefa de escolher uma profissão numa fase de pouca maturidade, e depois a descoberta de que o que escolheu não foi o realmente desejado.
Não era o que esperava, a expectativa frustrada se alastra, alterando a realidade antes imaginada.
Não existem escolhas sem nenhum risco.
E nessa dança de vai e vem, diante de escolhas erradas, de sucessivas frustrações nos estudos, nos trabalhos, e o tal do sucesso tal almejado não chegando, fazendo com que as pressões se inflamem, e acabem até com aqueles velhos sonhos de criança. Porém, o fracasso não está em ter errado. Diante do erro tenta-se novamente.
O triste seria vermos a vida passar por nós, sem termos de fato existido.
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Atualmente, é grande o número de profissionais atuando fora da sua área, da sua formação acadêmica.
Perdidos ou iludidos?
O dilema das decisões difíceis: onde estava a razão na hora da escolha? Fomos levados a tomar decisões baseadas em valores que imperavam na época, mas os valores estão sujeitos a mudanças conforme vamos amadurecendo. Nós definimos nossa essência a cada decisão que tomamos, então na verdade a responsabilidade é grande; a nossa existência receberá seus reflexos.
O meu pensamento é quebrado quando a criança maior fala: “Meu pai é médico, porque um dia quando ele era pequeno, cuidou do meu avô que levou picada de cobra. Depois ele começou a sempre brincar de médico.”
Imaginei o pai contando essa história à sua filha, e no que essa criança vai levar desse exemplo. A descoberta e o desenvolvimento de um dom, de uma habilidade com características únicas, e que nos faz diferentes uns dos outros, às vezes leva muito tempo para ser entendida.
Geralmente somos treinados a saber o que não queremos.
Onde estão nossos talentos?
Essa busca, que pode ir além dos nossos desejos e sonhos, exigirá dedicação, investimento de tempo e disposição para os erros e acertos. O desejo de querer ser algo prevalece aos medos e frustrações, e um dia, o incrível poderá acontecer através do que você tinha ou tem em suas mãos. A vida é sobre essa busca.
Seja em que idade for, o desconhecido sempre existirá trazendo insegurança, medo ou aflições.
Quase tudo o que acontece do lado de fora, é reflexo do que tem no lado de dentro.
Nem imaginamos isso, quanto mais percebemos que podem ser nossas próprias projeções. Cautela, prudência, devidas reflexões nos desviam de caminhos de escolhas erradas. Contamos essencialmente com a vontade e a coragem, como bases para a concretização dos sonhos.
III. A busca.
Depois de um intervalo de tempo, a garotinha vê seu pai chegando, e corre para abraçá-lo. Reaproximam-se do local onde estávamos sentados; ele nos cumprimenta e diz:
- “Minha filha, que papo estava rolando aí com sua amiguinha e com esse senhor?”
- “Eu falava do senhor, papai!” e resume rapidamente nossa conversa. Seu pai se diverte com a espontaneidade da filha, e nos pede licença.
- “Volto já, a mamãe me espera para almoçar.”
- “Papai, depois o senhor me ajuda na lição de casa? Me ajuda, me ajuda!” Com um sorriso no rosto, pai e filha, se entreolham com carinho.
Voltei no tempo, e me vi também ajudando minhas filhas com as questões mais difíceis.
E então, a garotinha conta como seu pai costuma ajudá-la nas lições de casa.
Mas quantas crianças não tiveram essa mesma oportunidade?
Quantas, nem ao menos, conseguiram receber uma educação básica na companhia de seus pais?
E de repente, a vida já fez dessa criança um adulto, já deu a ela vários empregos, inclusive já deu a ela uma família. A vida já a forçou fazer escolhas, e nem sempre foram as melhores, não levaram quase a lugar nenhum. Percebeu ainda não saber exatamente o que é a vida, e muito menos o que fazer dela.
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E então, como aquelas garotinhas, pode ainda se perguntar:
“O que vou ser quando crescer, ou melhor, o que vou ser se já cresci?”
Mesmo depois de já crescidos e adultos, haveria ainda tempo?
“Ajude-me, ajude-me!”. Grite com todas as forças na mente, no espírito e em voz!
Quando não temos forças para levantar nossas cabeças, é preciso ser corajoso e pedir ajuda.
Não é sinal de fraqueza e nem de entrega, e sim uma recusa de desistência.
Quantas e quantas vezes muitas coisas saíram do controle?
Busquemos a Luz, o Amor na sua pureza maior, que sempre ilumina; mesmo que estejamos à sombra das trevas.
Devemos sempre acreditar que há uma saída, haverá de ter, caso realmente seja esse o seu desejo, desejo real. O nosso crescimento transcende essa dimensão em que estamos inseridos, mesmo que assim ainda não o entendamos.
Qual é a sua real busca?
Quando decidirmos ser o verdadeiro propósito que é uma vida, o tempo se faz amigo, e o espaço assume o seu lugar.
Não existe absolutamente nada igual nesse mundo, e como seres únicos e diferentes de todos os outros,
entendemos que teremos, cada qual, um devido tempo de chegada. Não nos comparemos, portanto, aos outros. Sigamos o nosso curso, dentro do nosso peculiar tempo/espaço.
Todos teremos oportunidades, não lamentemos, não tenhamos vergonha de nós mesmos.
IV. Sentindo e reconhecendo.
As experiências que a vida nos proporciona, nos torna mais maduros, mais responsáveis, muitas vezes mais humildes. Na medida em que formos acreditando que o melhor acontece a cada um de nós, dentro das programações que nós próprios um dia fizemos, tornar-nos-emos capazes de aceitar e agradecer por todas as dádivas recebidas, em nossos caminhos de cada dia.
Tudo se manifesta dentro de uma esfera de merecimento, que muitas vezes foge de uma compreensão mais racional.
Portanto, voltemos nossa atenção no sentir.
Escutemos com atenção e carinho, e sem os ruídos da ilusão, a linguagem dos nossos sentimentos; permitamos entrar numa vibração de reconhecimento.
Reconhecer quem somos não é tarefa fácil, mas nos permite dar pequenos passos com mais lucidez.
Temos nos tratado bem?
O que sentimos por nós mesmos?
Nossas almas se comunicam pelos sentimentos. Talvez a sua aspiração, esteja naqueles que exprimem nossas necessidades mais profundas. A real intenção, as buscas da vida.
Em que momento muitos de nós nos perdemos?
Fernando Pessoa (1888-1935), importante poeta português, grande filósofo, que em dado momento se questionou, assim como muitos de nós, hoje fazemos. Transcrevo aqui um trecho deste belíssimo poema, que nos faz parar e refletir no tocante às nossas vidas, trazendo aquela criança que um dia em nós habitou, aquela que no meio de muitos sonhos se perdeu, se padeceu.
A criança que fui chora na estrada.
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
Se preciso for vista-se de sua criança, e na sua simplicidade de ser, responda sem medo nenhum, àquela simples e profunda pergunta: o que você quer ser quando crescer?
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